A teoria do xerife não permite um novo golpe militar

O assunto se tornou um dos raros hóspedes a terem longevidade nos espaços nobres dos noticiários e das redes sociais nos tempos atuais, quando fatos novos e relevantes ocorrem a todo instante. Determinando novas manchetes a cada hora. A longevidade referida é à fala do general do Exército Hamilton Mourão, que, durante uma palestra para a maçonaria, disse que, se os políticos e as autoridades não resolverem os problemas gerados pela corrupção no país, as Forças Armados deveriam intervir. Vários setores, inclusive oficiais da ativa do Exército, classificaram a fala de Mourão como insubordinação.

Na longevidade da fala do general, eu vejo uma boa oportunidade, a minha geração de repórteres, de lembrar aos nossos leitores alguns fatos importantes que determinaram o nosso modo de vida atual. E, para os novatos na reportagem, uma grande chance de fazer uma grande matéria. Vamos em busca dos motivos da longevidade da fala do general. Ela despertou nos velhos repórteres da minha geração, que ocupam espaços importantes como comentaristas políticos nos noticiários e nas redes sociais, a lembrança do golpe militar de 1964 e toda a repressão desencadeada pelos 25 anos seguintes.

Na geração atual de repórteres e de jovens comentaristas políticos, a fala do general é mais um assunto no meio da enxurrada de fatos que inundam o seu dia a dia.

Essa é a conjuntura nos noticiários e nas redes sociais. Para situamos o nosso leitor, vamos lembrar alguns fundamentos do nosso modo de vida atual. O general Mourão tem o direito de dar sua opinião e de  fazer as suas análises sobre a conjuntura atual. Lembro que o mesmo direito é exercido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que é uma verdadeira metralhadora giratória, disparando absurdos contra seus colegas que pensam diferente dele. E também pelo presidente da República, Michel Temer (PMDB – SP), ao classificar de falsa uma avalanche de provas do seu envolvimento em corrupção, denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR). E ainda pela sisuda nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que não mencionou o nome da Operação Lava Jato, considerada um símbolo contra a corrupção pelos brasileiros, no seu discurso de posse.

Dentro desse contexto, o general não foi insubordinado ao dar a sua opinião. Ele exerceu um direito seu. Como foi exercido pelas as outras autoridades que citei. No caso do general, ele praticaria um crime se usasse o seu cargo para conspirar contra a Constituição, como fizeram os seus colegas em 1964. Aqui, eu quero defender o meu interesse pessoal. Como repórter, eu digo que, quanto mais as autoridades emitem suas opiniões pessoais, é melhor para nós, porque podemos garimpar no meio das baboseiras que falam informações que nos ajudem a enxergar os bastidores do poder. Hoje, os nossos colegas americanos conseguiram reativar o interesse dos seus leitores graças às baboseiras que o presidente Donald Trump diz, ao dar a sua opinião sobre assuntos oficiais, como é o caso das crises da Coréia do Norte e da Venezuela – há uma abundância de informações na internet.

Aqui, eu vou olhar a situação como um professor de história. O entendimento pelo repórter americano do estilo Trump de governar é facilitado pelo fato de eles viverem em uma sociedade que têm 200 e tantos anos de liberdade de imprensa. No Brasil, temos 30 e poucos anos. Portanto, é importante a gente usar acontecimentos, como o do caso da fala do general Mourão, para debater e tirar os esqueletos de dentro dos armários das redações. O golpe militar de 1964 é um desses esqueletos. Nos anos 60, palavras como as ditas pelo general eram sinal de golpe de Estado. Hoje, são classificadas de opinião pessoal. Por quê?

Para responder a essa pergunta, vamos fazer um mergulho no Brasil dos anos 60. O país era uma economia rural, onde não existiam o agronegócio nem a bem articulada e rentável agricultura familiar. O meio rural era formado por uma minoria de grandes proprietários de terra no Sul, conhecidos como fazendeiros ou estancieiros, e por uma maioria de miseráveis sem terra e de pobres agricultores familiares. Aqui cabe uma explicação: na época, a terra tinha duas funções: reserva de valor e de poder político. Tanto que os fazendeiros gaúchos eram conhecidos como gigolôs de vaca – deixavam o rebanho à própria sorte e recolhiam os que sobreviviam para vender. A situação agrária brasileira era semelhante ao restante dos países da América do Sul e da América Central, onde a luta pela terra era a principal bandeira política nesses países – há farta documentação (livros e teses acadêmicas) disponível na internet sobre o assunto.

As duas maiores potências militares e econômicas da época, Estados Unidos, capitalista, e a ex-União Soviética, socialista, estavam envolvidas na Guerra Fria – disputa pela hegemonia política mundial. O resto dos países do mundo orbitava ao redor de uma das potências. Tendo como bandeira a reforma agrária, em 1959, Fidel Castro fez a Revolução Cubana, saindo da órbita americana e passando para o lado da União Soviética um país caribenho a poucos quilômetros dos Estados Unidos. Uns quatro anos depois, em 1963, o então presidente brasileiro, João Goulart (PTB – RS), comprometido com as reformas de base, entre elas a agrária, mobilizou o país. Os americanos não queriam uma nova Cuba, ainda mais em um país com dimensões continentais como o Brasil. Daí financiaram com dinheiro, apoio de material bélico e de serviço de inteligência as Forças Armadas do Brasil para tomar o poder. Foi assim que nasceu 1964 –  há um vasto material disponível na internet. Imagine o poder da palavra de um general dentro desse contexto.

Hoje, a situação do Brasil e do mundo é outra. O país é uma sociedade industrial. No meio rural, o agronegócio acabou com os gigolôs de vacas e tornou a terra produtiva. E os programas oficiais de reforma agrária diminuíram sensivelmente o número de sem terra. Os pequenos agricultores se tornaram os grandes produtores de alimentos como leite, proteína animal e verduras. No mundo, a Guerra Fria acabou, e o poder foi diluído pelo surgimento de novas potências, como a China e a União Europeia. A grande preocupação mundial é a luta contra o terrorismo dos fundamentalistas religiosos e os cartéis de drogas e a questão ambiental. Dentro desse contexto, um golpe militar em um país continental como é o Brasil é como soltar um elefante em uma loja de cristais.

Por tudo isso, o repórter precisa avaliar com exatidão o que Mourão falou e o que os outros generais andam conversando. Alardear que os militares estão conspirando ajuda a tirar o foco do nosso principal problema do momento, que é termos na presidência da República Temer, um homem que lidera um grupo político descrito por duas denúncias da PGR como “quadrilhão”. Aqui, recorro a uma imagem popular para explicar o porquê de ser improvável um golpe militar: a do xerife – uma imagem de um defensor da lei que foi moldada na opinião pública pelos filmes de Hollywood. O nosso xerife é a Constituição, que garantiu a consolidação das nossas instituições que têm o dever de defender o modo de vida dos brasileiros. Imagine um general chegando à sala da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, ou à sala da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e as mandando para casa. Ou mandando tirar do ar a internet. Se fizer isso, os jovens lotam as ruas, gritando desaforos.

Como repórteres, temos que ficar atentos para saber quem realmente quer matar o xerife. E a desconfiança é a melhor ferramenta de trabalho que temos. Vou contar como me ensinaram a ser desconfiado. Em 1983, assim que coloquei o pé na redação da Zero Hora. fui aconselhado pelos repórteres veteranos a desconfiar de tudo. O conselho era ilustrado por uma história real, acontecida com o chefe de reportagem, Humberto Andreatta (falecido em 2007), o Betão, um gringo de dois metros de altura, forte e de fala macia. A redação era barulhenta, o som das máquinas de escrever e a fumaça de cigarro davam um toque mágico ao lugar. No meio de uma tarde, a hora de maior confusão, chega uma pessoa e pede para falar com o chefe de reportagem. Caminha até a mesa do Betão e diz que tem uma coisa importante para dizer. O Betão responde:
— Estou ouvindo, senhor.
O visitante fala:
— Sou um alienígena.
O Betão ficou com o rosto vermelho e respondeu:
— Sai daqui e pega o teu disco voador e vai lá na TV Gaúcha conversar com eles.
O cara foi embora. Uns cinco minutos depois de ele sair, um repórter foi até a mesa do Betão e disse o seguinte:
— Chefe, e se ele for alienígena mesmo?
Há muitas versões sobre a resposta do Betão ao repórter. O fato é que, por muitos e muitos anos, essa história foi repetida para os repórteres novos na redação, principalmente nas mesas dos botecos.

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