Para o repórter entender a greve dos policiais capixabas, é preciso amarrar as pontas

A greve da Polícia Militar do Espírito Santo está deixando um rastro de informações inéditas que precisam ser analisadas com profundidade pelos repórteres, que estão no meio do fogo cruzado entre uma população carregada de razões para reclamar da greve e os grevistas com igual quantidade de motivos para cruzarem os braços. Oficialmente, a greve acabou. Mas alguns batalhões ainda seguem parados. E o saldo deixado até agora pelo movimento impressiona: 127 homicídios, dezenas de saques no comércio e algumas centenas de outros crimes.
Primeiro, vamos ao lero-lero, como se fala no jargão dos repórteres sobre fatos conhecidos que precisam ser lembrados antes de começar a conversa séria. Vitória é uma cidade com 212 mil habitantes, capital do Estado, onde os moradores são conhecidos como capixabas. Ao longo dos anos, o município é usado como um esconderijo de chefes de grandes quadrilhas do Rio de Janeiro, especialmente criminosos ligados ao Comando Vermelho (CV). No final da década de 90, conversei longamente com agentes da Polícia Federal (PF) e da Polícia Civil do Espírito Santo sobre uma investigação que apurava se os quadrilheiros estavam pagando “pedágio” para se esconder na cidade. A apuração não foi concluída. Outro fato. O policial militar do Espírito Santo recebe o menor salário da categoria no Brasil. Isto o torna refém de outras fontes de renda, como a prestação de serviço de segurança no comércio, famoso bico. O salário está sendo pago em dia.
Agora, vamos à conjuntura atual. Assisti, li e escutei a maioria do que se noticiou sobre a greve. E recorri a várias fontes para entender o que não estava nos noticiários. O que foi noticiado dava a entender que as entidades de classe estavam usando as mulheres e os parentes de policiais militares para driblar a lei que proibe a categoria de fazer greve. Inclusive autoridades do governo classificaram a ação das mulheres e dos parentes como “teatro”. Perguntei a uma fonte minha sobre o assunto, e a resposta acrescentou informações novas:
– Os lideres do movimento são inexperientes e não souberam reagir às ameaças do governo. E, com isso, deixaram um vácuo na negociação que foi ocupado pelas mulheres e por outros familiares.
A organização das mulheres e familiares foi amparada por forças políticas locais e nacionais. Em 40 anos de repórter, já vi isso acontecer, o que descrevo como normal. Entre os apoiadores, merece destaque a atuação dos simpatizantes do deputado federal, Jair Bolsonaro (PSC-RJ). O deputado é pré-candidato a presidência da República em 2018. Ele não foi o único a usar o movimento como palco para vender suas idéias. Mas foi o que mais se destacou. Conversei com fontes no governo do Espírito Santo sobre um fato que me intrigou. Qual o motivo que levou as autoridades estaduais a insistirem na punição de praças e oficiais envolvidos na greve depois de fechado o acordo para pôr fim no movimento? Esse tipo de coisa, geralmente, é negociado durante o acordo. No caso do Espírito Santo, não só não foi negociado como a insistência pelo governo em punir virou manchete nos principais jornais do país. A resposta da minha fonte sobre o assunto foi curta:
– A decisão é política. Os fomentadores da greve (sem especificar quem) têm que saber que soubemos jogar duro.
Dois dias depois dessa conversa com a fonte, os jornais noticiaram que oito governadores, incluindo o do Rio Grande do Sul, e quatro vices, reuniram-se em Brasília. Em uma nota oficial, pediram ao governo federal e ao Congresso Nacional “que não seja aprovado qualquer tipo de anistia aos policiais militares que tiverem sido punidos pelos atos considerados inconstitucionais. Neste momento de instabilidade e insegurança, é preciso agir com firmeza para que situações semelhantes não se expandam para outras regiões do País”.
A pergunta que me veio à cabeça foi se o baixo salário que os policiais militares recebem no país e o fato de vários estados, incluindo o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro, estarem pagando os salários com atraso seria o estopim para fazer pipocar paralisações pelo Brasil afora. Conversei sobre o assunto com uma fonte que é liderança nacional da categoria. A resposta me surpreendeu:
– O andamento do projeto do governo federal da reforma da previdência social.
Argumentei que o presidente da República, Michel Temer, havia retirado do projeto os policiais militares e os bombeiros, alegando que eles eram pagos pelos estados.
– Ele falou que iria tirar. Mas não tirou.
Nas últimas décadas, como repórter acompanhei várias greves – geralmente disfarçadas – de policiais militares. A maior de todas aconteceu em Minas Gerais, em 1997, quando o cabo Valério dos Santos Oliveira, 36 anos, foi atingido por uma bala perdida na cabeça. A que acontece no Espírito Santo é totalmente diferente das outras manifestações. Em parte, pelo inédito contexto político e econômico nacional. Na política, temos vários deputados federais e senadores sendo investigados por corrupção, o presidente da República é um dos mais impopulares da história e a campanha para as eleições de 2018 já começou. Na economia, vários estados estão quebrados, entre eles o Rio Grande do Sul. E o governo federal só concorda em ajudar se houver contrapartidas do tipo: corte de pessoal e salários. Para entendermos o que está acontecendo no Espírito Santo, nenhuma palavra dos envolvidos com a greve, dos seus apoiadores e dos governos do Estado e da União pode ser desprezada. Porque ali pode estar a chave para se entender a situação e, com isso, explicar aos nossos leitores a trilha que os acontecimentos estão percorrendo. Não é uma tarefa fácil. Mas é necessário amarrar as pontas, como se fala no jargão dos repórteres.

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