Repórteres, nós precisamos resgatar a história dos doleiros no Brasil

Resgatar a história do doleiro é fundamental para entender como os corruptores e corruptos se organizaram para saquear o dinheiro público no Brasil. No sistema de corrupção, ele começou em um papel secundário e, com o passar dos anos, tornou-se uma espécie de caixa-preta das operações ilegais. Como ele chegou lá?

A história de como o nosso personagem chegou lá é do interesse do nosso leitor. Os personagens que habitam os noticiários e os conteúdos das redes sociais atualmente, os doleiros e delatores da Operação Lava Jato Lúcio Funaro e Alberto Youssef, 50 anos, representam a ponta do iceberg que navega submerso pelos mares do Brasil. Tem muitos outros doleiros em operação, principalmente nas fronteiras, em especial na com o Paraguai. Eles são responsáveis pelo funcionamento da economia clandestina formada pelo dinheiro de sonegação de impostos, caixa dois, tráfico de drogas, armas e munição e contrabando em geral. Como repórter, eu conheço profundamente o mundo dos doleiros das fronteiras, especialmente a do Paraguai. Nos meus 40 anos de profissão, sempre que precisei saber o que não estava sendo contando nos jornais sobre algum acontecimento, conversava com eles para entender a situação. Aprendi que, para sobreviver, o doleiro precisa saber de tudo que acontece ao seu redor.

Antes de seguir contando a história, vamos voltar no tempo. A função de doleiro foi ganhando relevância no Brasil, na medida em que a economia do país foi crescendo e o controle cambial – compra de moedas estrangeiras pelo governo federal – foi se aperfeiçoando. Nos anos 80, cada família classe média tinha o seu doleiro para conseguir moeda de maneira clandestina, que era usada para financiar suas viagens no exterior ou mandar dinheiro para parentes que viviam em outros países. O doleiro fazia parte da família. No início dos anos 90, eu fiquei várias semanas andando pelo Estado de São Paulo, investigando o então governador Orestes Quércia (PMDB – SP), falecido em 2010. Na época, ele era suspeito de corrupção, e eu conversei com muita gente para fazer a reportagem. Um dos personagens com quem falei foi um doleiro, e, na época, me comprometi em não revelar o seu nome – continuo mantendo o trato. Conversamos em uma pizzaria e, na medida em que o volume de garrafas vazias de cervejas aumentava na mesa, o papo ficava mais interessante. Na ocasião, o país vivia uma inflação altíssima. Ele me falou que, como a moeda nacional não tinha valor, o dinheiro usado na corrupção era o dólar. Hoje, eu vejo que foi justamente no período em que a moeda nacional não tinha valor, devido à alta inflação, que a função de doleiro ganhou importância na máquina da corrupção.

Nos anos 80 e 90, as malas de dinheiro da corrupção levavam dólares – há várias matérias na internet sobre o assunto. Com a estabilidade econômica trazida pelo Plano Real, a moeda nacional se valorizou, e os doleiros quase desapareceram. Precisaram se reinventar para sobreviver. Eles usaram os seus contatos com agentes financeiros internacionais para acrescentar a sua atividade a de lavador de dinheiro –  legaliza recursos ganhos ilegalmente.  Funaro e Youssef são os representantes dessa nova era dos doleiros. Nessa nova era, o doleiro tem como clientes principais os grandes corruptores e corruptos – seus nomes fazem parte das investigações da força-tarefa da Lava Jato. Na semana passada, eu conversei longamente com um doleiro da fronteira com o Uruguai, um homem velho e muito esperto. Ele me disse que, em uma simples operação de lavagem de dinheiro para pagar corrupto, seus colegas ganhavam mais dinheiro do que muitos empresários.

 

Perguntei, ao doleiro da fronteira uruguaia, a sua opinião sobre a delação de Funaro e Youssef, ele deu uma resposta curta:

– Eles traíram os seus clientes.

Aqui, eu quero refletir com os meus colegas repórteres calejados e com os novatos. Como repórteres, nós temos que alertar aos nossos leitores que figuras como os doleiros Funaro e Youssef têm que fazer parte dos livros que contam a história do Brasil. Sempre que falo, em minhas palestras para jovens sobre os personagens que não são citados nos livros de história do país, eu vejo  interesse da plateia pelo assunto. O rumo que o país irá tomar depende de nós, repórteres, explicarmos de maneira simples e direta o que está acontecendo. Dentro dessa visão, o doleiro não pode ficar de fora. A ausência desses personagens significa que a história está mal contada.

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