Sempre digo que na nossa cabeça de repórter o mundo funciona de maneira simples: de um lado temos os bandidos e do outro os mocinhos, estilo dos filmes de bangue-bangue de Hollywood. Li em algum lugar que essa maneira simples de ver o mundo vem da carga exaustiva de trabalho que temos e do tempo curto para executá-la. O fato é que ela nos limita a ter uma visão pouco aprofundada do contexto que cerca os fatos. O que aconteceu com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, se encaixa na história do bandido e do mocinho. Logo no início do aparecimento do coronavírus na China, colocamos nos conteúdos dos nossos noticiários que atuação do ministro era uma agradável surpresa no governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido, RJ). Um governo povoado por ministros exóticos, técnicos esquisitos e outras raridades – como publicamos nas nossas reportagens. Didático, bem informado, tom de voz agradável e com domínio do português, em poucas semanas Mandetta virou o nosso mocinho.
Aqui e ali, o presidente Bolsonaro falava nas entrelinhas que as coisas não eram bem assim como seu ministro dizia. Reclamava que os governadores e os prefeitos estavam exagerando com o isolamento social, o “Fica em Casa”. Nós jornalistas não acreditávamos que o presidente teria coragem de ir contra o resto do mundo, que defende o Fica em Casa, e contra o roteiro de trabalho que o seu ministro estava seguindo e que recebia elogios em várias partes do mundo. O presidente da República cansou de mandar recados e na noite de 24/03 chutou o balde em pronunciamento que fez na TV – há matéria na internet. Pelo conteúdo do pronunciamento presidencial a ideia que se tinha nas redações era de que o nosso mocinho tinha sido abatido, ele iria pedir as contas. Ainda mais que ele havia sido indicado para o cargo pelo governador de Goiás, o médico Ronaldo Caiado (DEM), que rompeu com Bolsonaro por causa do conteúdo do seu pronunciamento. Em entrevista a uma rede de TV, Caiado foi perguntado sobre o destino de Mandetta e respondeu o seguinte: “Eu falei que havia rompido com o presidente e que agora era com ele”. Contrariando o que todos pensavam, no dia seguinte, em entrevista coletiva, o ministro manteve o mesmo tom de voz nas explicações sobre o avanço do vírus no Brasil e limitou-se a dizer que quem o tinha nomeado era o presidente. Não respondeu nem falou com os jornalistas.
Nós não escrevemos. Mas publicamos nas entrelinhas das nossas matérias: Mandetta perdeu os anéis para salvar os dedos. Passou a usar um discurso técnico para justificar a posição de Bolsonaro. A última do presidente é dar força para a campanha “O Brasil não pode parar”, que foi proibida pela Justiça Federal do Rio de Janeiro (cabe recurso). O prefeito de Milão, Itália, Giuseppe Sala, apoiou a campanha “Milão não para”. A campanha é apontada como responsável pelo que hoje acontece na Itália, que neste sábado (28/3) superou os 10 mil mortos pelo coronavírus. Cada vez que Bolsonaro fala é como se desse uma bofetada no rosto do seu ministro. Aqui entra o nosso trabalho de repórter. Por que Mandetta vira a outra face? Ele não precisa ficar sendo esbofeteado todos os dias pelo presidente. Ele é médico, 55 anos, duas vezes deputado federal pelo Mato Grosso do Sul e dono de um vasto currículo de administrador. Mas ele ficou no governo. Foi uma decisão pessoal? Não sabemos. O que sabemos sobre o assunto? É que o roteiro dos acontecimentos segue um caminho conhecido. Sempre que um ministro considerado importante para manter o governo funcionando é colocado na guilhotina pelo grupo político do presidente Bolsonaro, surge uma mão misteriosa que o segura no cargo. Já aconteceu com o ministro da Justiça Sérgio Moro, com o da Economia Paulo Guedes e alguns técnicos governamentais. Muitos colegas acreditam que o dono da mão é o vice-presidente da República Hamilton Mourão. Não sei se é ele. Mas certamente a mão usou uma farda verde-oliva. Por quê? Nós estamos publicando que Bolsonaro está isolado no governo devido a sua posição contrária ao resto do mundo, incluindo o seu ministro da Saúde, no combate ao coronavírus.
O que vou dizer não é opinião. É fato. Bolsonaro só estará isolado quando os generais e outros militares que ocupam cargos na administração abandonarem os seus empregos. Até lá, muito embora não seja oficial, nas mentes dos brasileiros o fiador político do governo são as Forças Armadas. Bolsonaro não tem partido político, não tem base na Câmara e muito menos no Senado. Mesmo assim o governo funciona. Imagine o seguinte cenário. Mandetta sai do governo. A possibilidade de o caos se instalar é enorme. E não é qualquer caos. Trata-se de uma crise de saúde pública que significa caixões enfileirados de brasileiros mortos pelo vírus sendo mostrados nos noticiários das TVs. A conta vai ser cobrada do fiador. Dentro desse raciocínio que nos é mostrado pelos conteúdos que temos publicados chegamos à conclusão que a mão que segura as pessoas e mantém o governo funcionando está bem acima do vice-presidente. Até porque ela também segura o Mourão. De quem é essa mão? É a pergunta que deve tirar o sono de nós repórteres.