Não vou discutir as entranhas jurídicas do julgamento dos quatro réus responsabilizados pela tragédia da Boate Kiss, que incendiou na madrugada de 27 de janeiro de 2013, matando 242 pessoas e ferindo, com sequelas sérias, outras 636, a maioria jovens estudantes universitários em Santa Maria, importante cidade do interior do Rio Grande do Sul. Quero discutir a nossa responsabilidade como repórter nos dias, semanas e anos que se seguirão ao julgamento dos acusados, que aconteceu entre os dias 1ª e 10 de dezembro no Foro Central de Porto Alegre. Esse incêndio perfila-se entre as grandes tragédias da história da humanidade. No dia do incêndio, eu estava em férias, que foram canceladas, e fui enviado a Santa Maria para integrar a força-tarefa da redação na cobertura do caso. Fiquei lá por mais de 30 dias remexendo o caso Kiss. Sou calejado na cobertura de tragédias, incluindo a Guerra Civil de Angola, uma carnificina que começou em 1975 e só terminou em 2005, deixando milhares de mortos e feridos, principalmente crianças.
Mas o que vi na Kiss ainda me tira o sono. Três semanas depois do incêndio, lembro que, uma noite, depois de um longo dia de trabalho, fazia parte de um grupo de jornalistas que jantava em um restaurante em Santa Maria. Na medida em que o número de garrafas vazias se acumulava, a descontração aumentava na mesa. Até que um senhor levantou-se lá do fundo do restaurante, passou pela nossa mesa e perguntou do que nós estávamos rindo. Não esperou a resposta. Seguiu rumo à porta de saída. Outro episódio que me lembro durante a cobertura da Kiss. Consegui um fim de semana de folga e estava a bordo de um ônibus executivo de Santa Maria para Porto Alegre. No meio da viagem, uma jovem universitária, que tinha adormecido, acordou aos gritos e chorando. Ela teve uma crise nervosa. Ainda hoje, quase nove anos depois da tragédia, pessoas que estavam na boate naquela noite têm crises nervosas. Qual é a nossa responsabilidade de repórteres no caso Kiss? Não deixar virar notícia de pé de página as histórias dos mortos e feridos na tragédia. O julgamento não foi um ponto final no caso. Ainda há muita coisa nas 13 mil páginas do inquérito policial que merece ser remexida em busca das digitais dos arquitetos do incêndio da Kiss. Em 21 de novembro fiz o post “Julgamento dos réus da Boate Kiss interessa a pais de adolescentes ao redor do mundo”. Não deu outra. No oitavo dia da transmissão do julgamento pela TV do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a sessão estava sendo assistida em 18 países e já tinha mais de 2,6 milhões de acessos.
Acompanhei o julgamento pela TV. O clima foi pesado. Chamou a atenção a habilidade do juiz Orlando Faccini Neto para resolver os conflitos entre os advogados de defesa e os procuradores de Justiça. Na noite de sexta-feira (10/12), o juiz leu as sentenças dos réus: os proprietários da boate Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão foram condenados com penas que vão de 18 a 22 anos – há matéria na internet. A sentença do juiz determinava a prisão dos quatro. Eles saíram livres do tribunal graças a um habeas corpus preventivo do advogado Jader Marques, que representa o Kiko, dado pelo desembargador José Martinez Lucas, da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). A liminar do desembargador foi revogada na quarta-feira (14/12) pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, e os quatro foram para a cadeia – há matéria na internet. O caminho até a sentença final dos réus é longo. Acompanhar essa história é importante. Mas também é importante atuarmos em outro setor da tragédia da Kiss, que é manter viva a história das vítimas e dos feridos. Essa estratégia ajuda a diminuir as chances de que aconteça uma nova Kiss, porque mantém a opinião pública alerta para o problema. Nem os municípios, muitos menos os estados e a União, têm condições de fazer uma fiscalização eficiente sobre o funcionamento das casas noturnas. Daí a importância de manter a comunidade mobilizada para o problema. Por quê? Simples: adolescentes e jovens continuam lotando esses lugares. Lembro que antes da Kiss a preocupação dos pais era com a segurança dos seus filhos fora da casa de espetáculos. A tragédia nos alertou que nossos filhos estavam se divertindo em ratoeiras.
Esperar que os empresários da noite tenham consciência em cuidar da segurança dos seus estabelecimentos é como praticar roleta-russa. A maioria deles está interessada apenas no lucro imediato. Cito dois fatos. Logo depois do encerramento do julgamento do caso Kiss, em Erechim, uma cidade agroindustrial no interior gaúcho, os músicos de uma banda usaram fogos de artifício durante o show em uma casa noturna. Um dos presentes ligou e denunciou a situação para os bombeiros, que fecharam o estabelecimento. Em Porto Alegre, o mezanino de um bar que não tinha licença para espetáculos musicais desabou, ferindo várias pessoas. O dono do bar é reincidente – há matéria na internet. Sabem-se lá quantos outros casos aconteceram e não chegaram aos ouvidos da imprensa. Geralmente os rolos nessas casas só viram matéria de jornal quando acabam em tragédia. Essa realidade me foi lembrada várias vezes pelo jornalista Luiz Roese, o Tigrinho, falecido aos 45 anos, em 2019. Foi o único repórter no Brasil que seguiu acompanhando o dia a dia do caso Kiss depois que ele desapareceu das manchetes dos noticiários.