Houve uma conversa nas entrelinhas que passou batida pelos repórteres e que merecia ter sido esmiuçada durante a entrevista coletiva concedida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, acompanhado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Na ocasião, na tarde de sexta-feira (22/10), Guedes tentava acalmar os mercados, que estavam preocupados com a decisão do governo de furar o teto dos gastos públicos com a implantação do Auxílio Brasil, que substitui o Bolsa Família, dando R$ 400 mensais para as pessoas necessitadas – há matérias na internet. Assisti à entrevista sem a obrigação de sair correndo para redigir a matéria. Um luxo que me concedo depois que deixei a redação, onde trabalhei de 1979 a 2014 como repórter especializado em conflitos agrários, crime organizado nas fronteiras e migrações. Na correria da cobertura diária de assuntos nacionais o foco do jornalista está no tema principal abordado pelo entrevistado, que pode lhe dar a manchete de capa e o furo na concorrência. É sobre a conversa nas entrelinhas que vamos falar. Vamos aos fatos.
Logo no início do governo Bolsonaro, nos primeiros meses de 2019, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, disse, em tom de brincadeira, que Guedes era um fantástico vendedor. Vendia geladeira para esquimó, como se diz no jargão das redações dos jornais. A capacidade do ministro para expor os números de uma maneira a descrever um futuro maravilhoso é fantástica. Durante a entrevista de sexta-feira não foi diferente. Mas lá no meio da conversa se podia perceber a preocupação dele com três assuntos. O primeiro é que depois da tentativa de Bolsonaro de dar um golpe de estado no Dia da Independência, que ficou conhecida como Manifestações de Sete de Setembro, espalhou-se pelas cúpulas dos mercados de capitais que Guedes estava apoiando um golpista. Durante a sua conversa na sexta-feira, ele fez um pausa para lembrar aos presentes que ele não estava trabalhando com um golpista. Mas com um presidente da República eleito com 60 milhões de votos. Não é a primeira vez que o presidente Bolsonaro ensaia uma tomada do poder. Já tinha feito isso em abril de 2020, quando discursou em uma manifestação na frente do quartel-general do Exército, em Brasília (DF). Por que agora Guedes resolveu dar a sua versão sobre o assunto? Antes de responder à pergunta, vamos avançar na nossa conversa. Guedes também falou da sua crença na vacina. Ele já tinha falado nisso antes. Mas desta vez foi mais enfático.
Agora respondendo à pergunta. Até agora, Bolsonaro é apenas um “boca de conflito” no poder, uma pessoa que cria confusão toda vez que fala. Tudo mudou com a conclusão da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do Senado, a CPI da Covid. Por quê? Os senadores demonstraram onde estão as digitais do governo federal na morte de mais de 600 mil brasileiros pela pandemia causada pelo vírus. E acusam o presidente da República de ter praticado uma dezena de crimes, entre eles “contra a humanidade”. Há uma discussão entre os senadores sobre a inclusão ou não do nome de Guedes na lista de indiciados. Esteja o nome dele ou não no relatório final da CPI, o fato é que ele é ministro de um presidente da República que responderá perante os tribunais nacionais e internacionais sobre as mortes na pandemia. E isso fechará muitas portas para ele ao redor do mundo. Soma-se a esse fato o carimbo que os ecologistas ao redor do mundo colocaram no governo do Brasil de devastador da Floresta Amazônica. Guedes deu um “toque” no assunto durante a entrevista. Vejamos: o ministro Paulo Guedes é um homem do mercado que faz parte de um governo envolvido em crimes contra a humanidade e na devastação da Floresta Amazônica. Não é preciso ser um gênio para saber que ele terá muitos problemas com os seus pares por um longo tempo. Ele está preocupado com isso. E essa preocupação cria uma oportunidade para um repórter ouvi-lo sobre o assunto. É uma conversa de grande interesse do nosso leitor.
Usando a linguagem dos pugilistas. A CPI da Covid encaixou um golpe poderoso na desastrada política administrativa do governo na área da saúde durante a pandemia. Esse relatório vai circular pelo mundo e vai sobrar para médicos, empresários e profissionais liberais como Paulo Guedes, ligados ao governo. Por quê? São mais de 600 mil mortes, cenas horríveis como a morte por asfixia por falta de oxigênio hospitalar em pacientes internados em Manaus (AM) e no interior do Pará. Fotos de dezenas de enterros e covas abertas. Absurdos como pesquisas ilegais feitas com o Kit Covid pelos médicos dos hospitais e ambulatórios do plano de saúde Prevent Senior, de São Paulo. É um rolo muito grande para ser esquecido. Nos dias atuais, o governo Bolsonaro é conhecido no mundo por quatro motivos: ter tentando dar um golpe na democracia, devastar a Floresta Amazônica, ter contribuído para a morte de 600 mil brasileiros executando uma política negacionista em relação ao poder de contágio e letalidade do vírus e agora ter dificultado a reação da economia furando o teto de gastos públicos. Não é pouca coisa. O ministro Paulo Guedes tem razão de estar preocupado com a imagem dele. Como tenho dito nas conversas com os colegas: por muitos e muitos anos nós vamos ouvir falar sobre a CPI da Covid.