Há uma armadilha para os repórteres na investigação da Polícia Civil sobre o envolvimento de sete seguidores do satanismo no rapto e no sacrifício de duas crianças em um ritual, no interior de Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre: a intolerância religiosa. A constituição brasileira de 1988 reafirma o direito à liberdade de crença e de culto religioso. Os investigadores têm usado, como esteio dos seus argumentos para o envolvimento do grupo no crime, o fato de eles serem adoradores do diabo. E os detalhes de como tudo aconteceu estão sendo descritos pelos policiais, baseado no que foi relatado para eles por uma mulher que se tornou testemunha ao voltar a um local próximo onde acontecia o ritual para buscar a bolsa que havia esquecido durante a faxina. É apenas a ponta de um iceberg de uma série de fatos ainda não resolvidos pelos investigadores – como as declarações, em uma entrevista coletiva, de um dos delegados do caso, Moacir Fermino, da 2ª Delegacia de Homicídios de Novo Hamburgo (2ª DPH), de que teve “revelação divina” que o levou a descobrir os sete suspeitos (quatro estão presos e três foragidos).
Os nomes dos suspeitos estão disponíveis em várias reportagens na internet. Não menciono nomes por julgar que o caso cheira mal – o que significa, no jargão dos repórteres, que tem muito mais “eu acho que foi assim” do que provas. Atrapalhar-se na solução de um caso desses não é exclusividade da Polícia Civil gaúcha. Acontece ao redor do mundo. Eu descobri isso no início da minha carreira de repórter, nos anos 80. Na ocasião, tinha feito uma notícia do dia sobre rituais de adoradores do diabo. No dia seguinte à publicação, eu recebi uma ligação de um antropólogo, do qual, passados 35 anos, não lembro o nome. Mas lembro que a conversa foi longa e civilizada. Ele me disse que o satanismo é uma crença, dividida em várias linhas de pensamento, tão antiga como as religiões tradicionais – cristianismo, judaísmo e islamismo. Por não ser uma pessoa religiosa, a ideia que eu tinha na cabeça sobre o assunto havia sido colocada lá pelo padre Nicolau – figura tradicional e boa de papo, nos anos 60, em Encruzilhada do Sul – e de um ex-sogro meu que era pastor da Igreja Assembleia de Deus. Depois da conversa com o antropólogo, eu comecei a rever os conceitos sobre o assunto que o padre e o pastor haviam me dito.
Trabalhei com investigação jornalística nas últimas quatro décadas. E digo que, se os investigadores da Polícia Civil não se derem por conta e retirarem do caso a intolerância religiosa, as chances de resolver o crime são poucas. Vamos aos fatos. Em setembro do ano passado, foram descobertos à beira de uma estrada, em Novo Hamburgo, restos mortais de duas crianças – que, mais tarde, exames de DNA mostraram tratarem-se de dois irmãos, um menino e a uma menina. Por envolver criança, na época o caso ocupou grandes espaços nos noticiários – jornais, sites, TVs, rádios e outras plataformas de mídia. Esse tipo de crime é muito difícil de resolver, para qualquer polícia ao redor do mundo. No caso gaúcho, quatro meses depois de os restos de os cadáveres terem sido encontrados, o delegado Moacir Fermino anunciou, em coletiva de imprensa, que tinha recebido “revelações divinas” que levaram à solução do caso. Após as declarações do delegado, seus superiores vieram a público explicar o que ele tinha dito. Atribuindo a suas declarações o fato de ele pertencer a uma igreja evangélica. Como todo brasileiro, o delegado tem o direito de ter sua crença. Mas não pode deixar que ela guie o seu trabalho policial. Assim como os sete seguidores de Satanás têm o direito a sua crença. Mas não o de fazer sacrifícios humanos.
Chegamos ao xis dessa investigação. O delegado tomou um atalho para resolver um crime de difícil solução e teve o seu caminho facilitado devido à carga de intolerância que o nosso modo de vida tem com aqueles que seguem o satanismo. Em minha opinião, e quero discuti-la com os meus colegas repórteres calejados e com os novatos, a condução da investigação policial colocou esse caso em uma encruzilhada. Se as provas do inquérito policial não convencerem a Justiça (Ministério Público e o juiz), o caso pode ter o mesmo destino do que aconteceu em 1995 com o agricultor Olívio Correa, na época com 56 anos (faleceu em 2010), em Estância Velha, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Ele teve os seus dois olhos roubados – o caso tem uma vastidão de reportagens na internet. A Polícia Civil apontou um casal, que seria seguidor do satanismo, como suspeito pelo crime. Eu trabalhei nesse caso e lembro que as provas contra o casal não convenceram a Justiça, e o caso até hoje não foi resolvido. Outro caminho que o caso das crianças poderá seguir aconteceu em 1980 – na época, estava terminando o curso de jornalismo na Fabico, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Fortunato de Deus da Silva Afonso, o Deusinho, agricultor do interior de Piratini, pequena cidade agropecuária do sul do Estado, havia sido expulso de uma igreja evangélica por motivos de comportamento. Montou uma igreja para ele e dizia para seus seguidores que era Jesus Cristo. Acabou matando a mãe e um irmão. Com o coração da mãe, fez um arroz carreteiro. Ele e seus seguidores foram presos – tem reportagens na internet sobre o caso.
Na ocasião, eu lembro de ter lido nos jornais que os seguidores da igreja evangélica ajudaram muito a polícia na coleta de provas contra o Deusinho, que era um louco. No caso das crianças, se os sete suspeitos são culpados, os investigadores podem encontrar informações preciosas entre os seguidores do satanismo na Região Metropolitana de Porto Alegre. Há duas informações divulgadas pela polícia para a imprensa que podem ajudar na solução do caso: a suspeita de as crianças serem argentinas e terem sido trocadas na Província de Corrientes por um caminhão roubado no Brasil. A intolerância, seja ela religiosa ou política, é inimiga da boa investigação. Uma lição que aprendi fazendo reportagem.