Escrever e publicar é como apertar o gatilho de uma arma. Depois que a bala saiu pelo cano não tem como fazê-la voltar. Essa lição o foca aprende no seu primeiro dia de redação. E ela foi aprendida da pior maneira pelo gaúcho Victor Sorrentino. Médico, escritor, palestrante internacional e influenciador nas redes sociais, Sorrentino foi preso no domingo (30/05) no Egito por assédio a uma vendedora de papiros e deverá continuar na prisão por mais duas semanas. Valendo-se do fato de que a vendedora não fala português, ele fez insinuações sexuais a respeito do papiro e publicou na sua rede social. Um grupo de mulheres ativistas dos direitos femininos traduziu o texto e denunciou o médico para as autoridades egípcias. A história toda está disponível na internet. Vou usar o episódio para conversar com os meus colegas, especialmente os jovens repórteres que estão na correria do dia a dia das redações. Na sua defesa, ele disse: “Eu sou assim. Sou (…) muito brincalhão”.
Antes de seguir contando a história. Não estou generalizando sobre o trabalho dos influenciadores das redes sociais, um setor que caminha a passos largos para a sua profissionalização. Estou tratando sobre os aventureiros. No domingo à noite, quando recebi do jornalista Felipe Vieira um WhatsApp sobre o fato, imediatamente lembrei-me do que aconteceu com um grupo de três turistas brasileiros (um engenheiro civil, um policial militar de Santa Catarina e um advogado de São Paulo) durante a Copa do Mundo de 2018, em Moscou, Rússia. Eles gravaram e colocaram nas redes sociais um vídeo com uma mulher no qual, valendo-se do fato de que ela não falava português, fizeram insinuações sexuais. Foram identificados e respondem na Justiça. São dois casos diferentes. O médico atua na área da comunicação – palestrante, influenciador digital e escritor. Os outros três eram turistas que fizeram bobagem. O que vou conversar com os meus colegas não é sobre as crenças políticas, religiosas e fantasias sexuais do médico. Vou falar sobre a tecnologia que se usa para produzir os conteúdos jornalísticos. E a que se usa para elaborar os conteúdos divulgados por um influenciador nas redes socais. O que as mensagens têm de igual? São duas mensagens com objetivos diferentes. Mas que depois de publicadas fugiram do controle. Como disse lá na abertura do texto. São como balas disparadas por uma arma. Depois que saem pelo cano não tem como retornar. O jornalista profissional experiente sabe que não se deve falar bobagens perto de microfones e câmeras, e muito menos fazê-lo por escrito. Por quê? Podem ser publicadas. Até os focas sabem disso. A propósito, para quem não é jornalista, foca é como chamamos na redação o repórter em início de carreira.
O influenciador das redes sociais, como o médico Sorrentino, tem outra formação. Casualmente, há duas semanas, conversei longamente com dois colegas formados em publicidade que montaram cursos para orientar pessoas que estão se aventurando no caminho de influenciadores. O objetivo é atrair atenção usando conteúdos recheados de episódios exóticos, meias-verdades e um linguajar que fica na linha divisória entre a lei e o ilegal. Por conta da conversa com os dois colegas assisti aos programas de uma meia dúzia de influenciadores em início da carreira. O linguajar é recheado de palavrões e insinuações semelhantes às feitas pelo médico gaúcho no Egito. O episódio da prisão de Sorrentino é a ponta de um iceberg. Pelo que entendi, vale o número de seguidores. Como eles foram conseguidos? Não importa. Aqui uma coisa que me importa. De uns tempos para cá tem prosperado nas redações dos jornais (papel e sites), rádios, TVs e outras plataformas de comunicação uma conversa de editores exigindo que os colunistas e os repórteres tenham cada vez mais visualizações do seu material. A exigência é do jogo. O que não é do jogo é comprometer a qualidade do noticiário na busca da audiência com a publicação de matérias exóticas que na maioria das vezes atraem mais leitores do que reportagens exclusivas. Até agora a história tem nos ensinado que a sobrevivência da publicação tem a ver com a sua seriedade e relevância para o leitor. O número de visualizações de uma matéria não significa que ela seja relevante. Hoje, nas redações, se tem mais dúvidas do que certezas a respeito dos números. Aliás, sempre se teve dúvidas sobre o nosso trabalho. É do jogo. Lembro o seguinte. Em 1974, eu comecei a trabalhar em jornal no setor de circulação – que coloca a publicação nas bancas e nas mãos dos jornaleiros das esquinas.
A grande discussão na circulação era o que significaria para o futuro dos jornais trocar a venda avulsa pela assinatura. A venda avulsa era feita nas ruas pelo jornaleiro, que atraia a atenção do leitor gritando a manchete a plenos pulmões. Uma boa manchete vendia mais jornais. Consequentemente, na venda avulsa o repórter que tinha uma matéria exclusiva ganhava poder de barganha com o editor. Com a assinatura, o leitor passou a receber o jornal em casa, independentemente de qual fosse a manchete, e isso provocou uma mudança dentro das redações. Como o jornal já estava previamente vendido, não interessava mais a manchete. Criou-se, assim, uma classe de editores burocratas. Recomendo aos jovens repórteres que conversem com os velhos sobre o assunto. Arrematando a nossa conversa. O que aconteceu com o médico Sorrentino é o extremo de uma situação absurda na busca por visualizações nas redes sociais. Essa ideia já foi plantada dentro das redações. Ela é um inimigo poderoso do que conhecemos por “bom jornalismo”. Temos que ficarmos atentos.
Essa é uma discussão muito interessante que precisa ser feita. Quanto aos seguidores, há vários sites que vendem seguidores e curtidas em pacotes a partir de 100 reais. E há um depoimento que achei muito revelador desta esquina em que se encontra o jornalismo, feito pela jornalista Elisangela Roxo, na Revista Piaui. Vale a leitura: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/eu-existo/