De uma maneira geral, tudo que se relaciona ao exercício da profissão de médico é tratado na imprensa nos dois extremos: heróis ou bandidos. Lembro que quando comecei a trabalhar como repórter em 1979 os médicos já eram tratados assim e hoje, 42 anos depois, continuam sendo tratados da mesma maneira. Até a década de 90 era raro os casos de crimes sexuais cometidos nos consultórios médicos virarem manchete de jornal. Por que não existiam? Existiam, sim. Só eram escassos nos jornais porque a Polícia Civil não tinha estrutura para lidar com o público feminino. A partir do momento que surgiram as delegacias da mulher esse tipo de crime começou a aparecer com mais frequência nas páginas dos jornais. É sobre esse assunto que quero conversar, em especial com os jovens repórteres que estão envolvido na cobertura do dia a dia das redações dos jornais, TVs, rádios e outras plataformas de notícia.
Nas conversas que tenho com os velhos repórteres nas mesas dos botecos, com estudantes de jornalismo e nas redações pelo Brasil afora, eu sempre digo que os jornais são as maiores fábricas de mitos que conheço. No exercício da nossa profissão de jornalistas construímos heróis e bandidos todos os dias e com isso criamos para o nosso leitor um mundo dividido entre esses dois personagens. A vida não é assim. E não é por outro motivo que vez ou outra os mitos que criamos se voltam contra nós. É o caso dos médicos. Na semana passada, sexta-feira (16/07), agentes da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Porto Alegre (RS) prenderam preventivamente o cirurgião plástico Klaus Wietzke Bradbch, acusado de ter praticado crime contra a “dignidade sexual” de 95 de suas pacientes. No início do mês de junho os agentes da Delegacia de Política Civil de Canguçu, pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, prenderam preventivamente o ginecologista Cairo Barbosa, 65 anos, por abuso sexual contra 35 pacientes. Os crimes começaram a ser praticados em 2012. Pergunto aos meus colegas repórteres. Eles estavam cometendo esses crimes nas nossas barbas e só tomamos conhecimento deles porque as vítimas denunciaram. Por que não tomamos conhecimento antes?
Antes de responder à pergunta. Citei esses dois casos recentes. Mas os arquivos da imprensa estão cheios de matérias envolvendo médicos que praticaram abusos sexuais contra seus pacientes por anos e anos, como por exemplo o ex-médico Roger Abdelmassih, que em 2009 foi acusado de abusar de 35 mulheres e acabou condenado a mais de 200 anos de prisão. . Agora, respondendo à pergunta. Nós somos surpreendidos por esses crimes cometidos dentro dos consultórios porque não incluímos na nossa lista de fontes profissionais ligados às organizações oficiais e de classe que controlam o exercício da profissão de médico. Eles sabem o que acontece nos consultórios. Não agem porque nós jornalistas não os pressionamos. Mais ainda: é muito escasso o nosso conhecimento sobre como essas entidades funcionam e quem é quem lá dentro.
Durante todo esses anos que exerço a profissão de repórter aprendi que sempre que nós jornalistas não temos conhecimento completo sobre um fato que relatamos aos nossos leitores, nós acabamos escrevendo bobagem e complicado a nossa vida. O jornalismo é uma ciência exata. Nada desvaloriza mais uma matéria do que a palavra “supostamente” que é inserida no meio das reportagens para informar o leitor que o repórter não sabe se aconteceu o que ele relatou. Os nossos leitores estão interessados em saber os motivos pelos quais esses médicos se envolveram nesses crimes por tantos anos e nós jornalistas simplesmente não sabíamos de nada. Claro, todos nós sabemos que a relação entre o paciente e o médico tem o seu sigilo protegido por lei. Não é isso que nos interessa. Nos interessa o que acontece fora da lei. Todas as profissões têm aqueles que se julgam acima da lei. Os médicos não são exceção. A vida é simples, ela só se torna complicada quando o jornalista não sabe o que está acontecendo.