Até onde Bolsonaro vai esticar a corda no caso das “vacinas das crianças”?

O ministro Queiroga trocou o seu juramento de médico pelas crenças negacionistas do Bolsonaro. Foto: EBC

Sem correr o risco de exagerar. O presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), está tentando boicotar a “vacina das crianças”. A expressão foi cunhada pelos noticiários para definir o imunizante da Pfizer liberado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o uso em crianças de cinco a 11 anos. A liberação era esperada com grande expectativa pelos pais desde setembro, quando começaram a ser vacinados os adolescentes dos 12 aos 17 anos. E chega em um momento muito oportuno, porque está circulando a ômicron, uma variante nova da Covid-19 que surgiu na África do Sul e se espalhou pelo mundo. Ninguém esperava que o presidente mandasse o seu ministro da Saúde, o cardiologista Marcelo Queiroga, complicar as coisas, dificultando o trâmite normal da compra do imunizante. Não depois do que aconteceu em 2020, o ano que a Covid iniciou a matança de mais de 600 mil brasileiros e teve sua ação facilitada pelo negacionismo de Bolsonaro em relação ao poder de contaminação e letalidade do vírus. Na época, foi graças às lambanças do governo que em agosto de 2020 foram rejeitadas duas ofertas de vacinas: uma de 70 milhões de doses da farmacêutica Pfizer e outra de 60 milhões da CoronaVac, oferecidas pelo Instituto Butantan, fabricada em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac.

As rejeições à compra das vacinas provocaram dois efeitos: o primeiro foi a abertura de um espaço no governo para que uma quadrilha formada por militares, pastores, empresários, agiotas e oportunistas de todos os calibres tentasse intermediar a compra de vacinas. E o segundo foi o consequente atraso da vacinação e a sua realização a conta-gotas, criando um ambiente em que as pessoas rezavam para chegar a sua vez de se vacinar antes de serem contaminadas pelo vírus. Houve cenas que nunca mais os brasileiros vão esquecer, como o colapso dos sistemas de saúde público e privado, a morte de pacientes por asfixia devido a falta de oxigênio hospitalar em Manaus (AM) e no interior do Pará, centenas de pessoas enterradas em covas coletivas e outros absurdos, como as experiências ilegais feitas em pacientes com o uso das medicações sem efeito contra o vírus fornecidas pelo Kit Covid, que foram conduzidas pela Prevent Senior, um plano de saúde de São Paulo. Tudo que aconteceu resultou no indiciamento de 68 pessoas, inclusive o presidente Bolsonaro, por uma dezena de crimes no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do Senado, a CPI da Covid. Em muito contribuíram para esses acontecimentos o então ministro da Saúde e general da ativa do Exército Eduardo Pazuello. Ele ficou famoso nas redações dos noticiários ao colocar um ponto final em um desentendimento que teve com Bolsonaro dizendo: “Uns mandam e outros obedecem”. No caso, ele obedeceu e transformou o negacionismo do presidente em política de governo.

Pazuello foi demitido no último mês de março porque se tornou símbolo nacional da incompetência na administração do ministério. Ele é especializado em logística e nunca entendeu nada da área médica. Foi substituído por Queiroga, que é médico. Nos três primeiros meses na Saúde, o novo ministro conseguiu se equilibrar no fio da navalha entre as exigências do presidente pela continuação das políticas negacionistas em relação ao vírus e a pressão da sociedade, incluindo a CPI da Covid, de seguir a ciência no combate à pandemia. Em setembro, Queiroga desceu do fio da navalha e postou-se ao lado presidente. Desde então tem sido o executor das políticas negacionistas governamentais. No caso do episódio da vacina das crianças, Bolsonaro disse em uma live que divulgaria os nomes dos funcionários da Anvisa que liberaram a vacina. Um absurdo que beira o delírio. Tanto que indignou todo mundo, inclusive o diretor-presidente da Anvisa, o médico e oficial da Marinha Antônio Barra Torres. Queiroga disse que a inclusão do imunizante da Pfizer para as crianças dependeria de vários estudos que o seu ministério iria fazer. Estava empurrando o caso com a barriga para ganhar tempo e, com isso, ficar bem com o presidente. Pouco se lixando para a agonia dos pais em vacinar os seus filhos. Na sexta-feira (17/12), o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), deu 48 horas para o governo explicar o que está acontecendo com a história da vacina. A Advocacia-Geral da União deverá dar as explicações ao ministro durante a semana. Enquanto isso, Queiroga anunciou uma reunião no próximo dia 5 para encaminhar o assunto da vacinação das crianças.

Aqui é o seguinte. Queiroga é médico e, portanto, sabe que cada segundo no meio de uma pandemia conta. Daí a pressa dos pais em vacinarem os seus filhos, como já aconteceu em vários outros países, entre eles os Estados Unidos. E todas aquelas pessoas que gravitam ao redor do presidente sabem que ele está perdendo votos às pencas diariamente para os seus adversários nas eleições de 2022. Não é preciso ser especialista em estratégia política para entender a antipatia que representa perante a sociedade a tentativa de boicotar a vacina das crianças. Isso significa a perda de algumas centenas de votos por parte de Bolsonaro. Conversei com colegas da cobertura política. Não existe consenso entre nós jornalistas. Mas há um número significativo e qualificado de colegas que acreditam que os bolsonaristas “raiz” não têm votos suficientes para levar o seu candidato para disputar a reeleição no segundo turno. Pelas pesquisas de intenção de votos de hoje (19/12), a disputa será entre o atual presidente e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), que é o favorito. Tenho dito para os colegas que o presidente da República não fala esse monte de maluquices da boca para fora. Ele acredita nelas.

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