A maneira como é estruturada a Justiça no Brasil é cruel com os pais das vítimas. Nas mãos de um bom advogado, o suspeito pelo crime consegue empurrar para frente o caso por uns bons anos. Essa realidade foi lembrada aos pais das vítimas da Boate Kiss na tarde de sexta-feira, no Tribunal de Justiça (TJ) gaúcho. Os desembargadores decidiram que o caso não irá a júri popular. Mas será julgado por um juiz criminal de Santa Maria, cidade onde aconteceu a tragédia na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Houve um incêndio na Kiss, onde morreram 242 pessoas, a maioria jovens universitários, e 636 ficaram feridos. Foram apontados como culpados pelo incêndio os proprietários da boate, Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann. E integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o assistente de palco Luciano Bonilha Leão e o vocalista, Marcelo de Jesus dos Santos. A decisão dos desembargadores livra os réus da acusação de dolo eventual – quando se assume o risco – para homicídio culposo e incêndio, o que resultará em penas menores.
Da decisão dos desembargadores, cabe recurso, e o Ministério Público irá recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). A decisão do TJ tem que ser acatada e respeitada, ponto. Ela consagrou a estratégia dos advogados dos réus, que é empurrar para frente os processos, um direito assegurado pela Constituição. Para nós, repórteres, a decisão do TJ instalou no nosso meio uma inquietante pergunta: estamos dando a devida atenção que o caso Kiss merece? Para responder a essa pergunta, nós temos que correr os olhos pelos noticiários sobre o caso nos últimos cinco anos. Nesse tempo, a única vez em que o caso foi para as manchetes foi quando o Ministério Público de Santa Maria entrou com uma causa – calúnia e difamação – contra pais de vítimas – existe um farto volume de reportagens na internet sobre o episódio. Fora isso, o cotidiano da luta dos familiares das vitimas da Kiss por justiça não mereceu a atenção dos noticiários. E por que não mereceu a atenção dos noticiários?
A resposta para essa pergunta é simples, e qualquer estudante de primeiro semestre da faculdade de jornalismo sabe a resposta: não teve novidade. Aqui quero refletir com os meus colegas repórteres rodados e com os novatos na profissão. Será que a falta de novidades no caso não é grande notícia? Vejamos: em todos os cantos do mundo, o incêndio da Kiss é perfilado ao lado das maiores tragédias – é buscar na internet. Isso significa que cada coisa que acontece no caso é leitura obrigatória de jornalistas, pesquisadores e autoridades ao redor do mundo. Nós estamos tratando o caso Kiss como se fosse uma briga de bar que resultou em um homicídio. E não como uma tragédia que poderia ser evitada, caso as leis que regulamentam o funcionamento das boates tivessem sido obedecidas, como ficou claro no inquérito policial.
Se repórteres não voltarem a dar a grandiosidade que é esse caso, nós corremos o risco de ter o dedo dos nossos colegas ao redor do mundo apontado para a nossa cara, chamando-nos de omissos. Ninguém esquece o que aconteceu naquela noite do incêndio. Eu estava em férias e, no dia seguinte à tragédia, fui chamado para integrar a equipe que estava trabalhando no caso. Logo que cheguei à cidade, ainda havia fumaça nos escombros da Kiss. O cheiro de carne queimada podia se sentido. Fiquei uns 45 dias na cidade. O trabalho de apuração foi duro. Primeiro, entender como funcionava a burocracia da Prefeitura Municipal e quais eram as ligações existentes entre os donos da boate e as autoridades. Depois, como era que o Corpo de Bombeiros se encaixava nessa história. Ouvir o relato dos pais das vítimas marcou a todos os jornalistas que trabalharam no caso. No meu caso, um relato feito por um peão, pai de uma das vítimas, me marcou. No meio de uma conversa informal, ele me disse a respeito do seu filho, que era o primeiro da família a conseguir chegar à universidade.
— O nosso doutorzinho se foi.
Na ocasião, eu não escrevi nada sobre a conversa com esse pai, porque o caso já tinha acontecido havia duas semanas, e o foco no trabalho de apuração era conseguir descobrir fatos que mostrassem a responsabilidade das autoridades, dos proprietários da boate e dos integrantes da banda com o incêndio. A conversa ficou gravada na minha mente, e creio que jamais irei esquecer. Como as fotos feitas pelos peritos do Instituto-Geral de Perícias (IGP) dos corpos das vítimas nos escombros da Kiss. O prefeito da época, Cezar Schirmer (PMDB), é o atual secretário da Segurança do Estado. Os quatro acusados de serem os responsáveis pelo incêndio estão em liberdade e tocando os seus negócios. E o tempo está se encarregado de empurrar o caso para o esquecimento. Inclusive falam que a cidade precisa esquecer o que aconteceu e tocar a vida em frente. Esse tipo de pensamento é uma maneira de maquiar a realidade. O fato é que, seja lá qual for a decisão da Justiça sobre os quatro acusados, enquanto ela não acontecer, perante os olhos do mundo, os 242 mortos no incêndio estarão insepultos.
O repórter não pode deixar que isso seja esquecido.
Como irma de uma das vitmas daquela noite infernal agradeço as tuas palavras e o teu empenho em manter em midia essa tragedia…Mas a questao e q o esquecimento sera o “melhor”a se fazer nuna cidade mediocre em q vivemos…nesse Estado omisso ….nesse pais da impunidade…fica dificil acreditar q um dia existira Justiça…nos resta rezar e pedir a Deus nos proteja…q nunca mais aconteca esse tipo de tragedia…principalmente em nossas vidas q ja sao incompletas desde a noite do dia 27/01/2013…e q acima de tudo meu irmao e todos os anjos q partiram com ele tenham muita luz..e Deus ainda possa nos dar força e coragem para seguir em frente…convivendo com a dor da saudade e tbm da impunidade…Mas de coraçao obrigada pelo teu carinho e apoio…
Lucina, eu tenho 67 anos. E nos 40 anos que ando pelo mundo fazendo reportagens, principalmente em regiões de conflitos, vi como o ser humano pode ser cruel com o seu semelhante. Os animais selvagens matam para se defender ou se alimentar. O humano mata para ganhar dinheiro. Fui e sou testemunha de tal realidade. De 1983 até 2014 trabalhei como repórter investigativo da Zero Hora. Hoje estou trabalhando na formação de novos repórteres e o primeiro ensinamento que faço aos meus jovens colegas e nunca…nunca esquecer absurdo como o caso Kiss.
Não concordo que o episódio tenha sido negligenciado pela imprensa. Pelo contrário, basta ir ao arquivo dos jornais ou compulsar as edições da época para ver q durante,muito tempo o assunto quase principal era a tragédia da boate Kiss.
Rogério, eu concordo contigo -estava lá e trabalhei feito um condenado. Nós estamos negligenciado pelo que não estamos fazendo no presente.Abs
Não li antes porque esse tal wordpress não me notificou de tua resposta…
Se permitir Carlos Wagner vou reproduzir um trecho para colocar na capa da Página Somos Todos Pais Kiss no facebook. Li toda a matéria e é exatamente isso que sentimos. O esquecimento gradual que aos poucos mostra a crescente insensibilidade de muitos como no caso dos desembargadores que votaram contra o juri popular e citam em seus votos que os pais tem raiva, o que se conclui que não procuram a justiça, mas a vingança. Um deles citou até as “ofensas” que foram feitas ao promotor Ricardo Lozza e também ao advogado de defesa Jade Marques. Não perderam filhos na tragédia e acreditam que deveríamos ter temperança… Não sabem que muito ao contrário foram eles que nos ofenderam primeiro quando um promotor chamou uma mãe de leviana quando esta educadamente perguntou sobre o motivo de um promotor estar abraçado ao prefeito. Fomos ofendidos quando este promotor Ricardo Lozza disse ” Não tenho do que me arrepender”. Fomos ofendidos por advogados quando mesmo com tantas evidencias provas e testemunhas de negligencia, irresponsabilidade e comprovadamente que a boate sempre esteve à margem da lei, dizia que seu cliente tinha toda a documentação e a boate estava em ordem…tudo para livrar seu cliente não poupou críticas e frases sem pensar na dor e sofrimento de centenas de pais que logo perceberam que a tragédia poderia ser evitada. Só melhorou a sua postura quando foi interpelado por um pai e aí percebeu onde estava se metendo. Fomos ofendidos quando promotores intimidaram pais com processos, fomos ofendidos quando a prefeitura se defendendo de um processo justificou que os jovens não saíram da boate porque estavam embriagados. Fomos ofendidos quando um promotor ainda em junho disse que tinha certeza das mutretas e nada fez porque poderia ser considerado prevaricador por não ter provas, Não foi mais a fundo se sabia disso e recebeu a resposta da prefeitura (a nova administração) em uma nota dizendo que se ele sabia e nada fez está de certa forma corroborando para que a impunidade se perpetue. E agora fomos ofendidos quando desembargadores para justificar seus votos colocam também de certa forma a culpa nos pais. Não basta perder filhos em uma tragédia evitável, ainda temos que ouvir o desrespeito de membros do poder público que não atendem ao mais básico dos princípios que é dar a sociedade as respostas que ela merece.
Não sei o que dizer…só apelo para justiça!
Continua lutando por justiça.