Não é para menos que o mau humor esteja avançando entre os jornalistas nas redações do Brasil. Em plena época das viagens espaciais, dos transplantes de órgãos, da internet de tudo e dos aparelhos celulares que colocam o mundo na palma da mão de todos, nós jornalistas temos que nos preocupar com assuntos como Terra plana, teorias da conspiração que questionam se as vacinas são eficientes ou apenas um grande teste das indústrias farmacêuticas e tentativas de reinstalar o regime militar no país. Além de outros absurdos que fazem com que o Brasil se pareça com o enredo do filme Jurassic Park, ficção científica de 1993 dirigida por Steven Spielberg em que cientistas ressuscitam dinossauros que foram extintos há 60 milhões de anos. Nos dias atuais, o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), tornou política do governo o saudosismo dos golpistas de 1964, grupos de militares e civis que governaram o país até 1985. E que hoje lutam pela reinstalação daquele regime no Brasil.
Esse engajamento de Bolsonaro com a tentativa de ressuscitar os valores culturais, econômicos, sociais e políticos de 1964 tem exigido da imprensa uma atenção permanente na defesa e preservação dos avanços obtidos pelos brasileiros com a redemocratização do país e a promulgação da Constituição de 1988. Isso mantém as redações ocupadas. E impede que avancem para outros assuntos atuais que exigem a atenção da imprensa, como por exemplo as novas fontes de energia renováveis e o racismo estrutural que está impregnado na sociedade brasileira e, vez ou outra, explode, como no caso da morte por asfixia do homem negro João Alberto Freitas por seguranças da loja do supermercado Carrefour no bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre (RS), em 19 de novembro de 2020. Ou mais recentemente a morte a pancadas do imigrante congolês Moïse Mugenki Kabagambe, no quiosque Tropicália, na orla do Rio de Janeiro (RJ) – há matérias sobre estes dois episódios disponíveis na internet. A cobertura da imprensa nos dois casos têm sido a do dia a dia, reforçada por artigos de cientistas. Mas traz muito pouco de investigação jornalística. Pelo simples motivo de que não há jornalistas disponíveis nas redações para investir em matérias que exijam tempo e recursos para a sua execução.
Nada deixa um repórter mais frustrado do que ficar atolado no factual da matéria sem poder avançar. Nos dias atuais, as lambanças de Bolsonaro ocupam os jornalistas diariamente. Um dia desses, em uma mesa de boteco, um colega me alertou para o elevado número de vezes que se ouve nos noticiários diários o nome do presidente da República. Tem como ser diferente? Eu duvido, porque os jornalistas não podem virar as costas para a maior autoridade do país, no caso o presidente da República. Cito o exemplo das vacinas das crianças. No final do ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a vacina contra a Covid para crianças de cinco a 11 anos. Bolsonaro e o seu ministro da Saúde, o médico Marcelo Queiroga, armaram uma confusão tão grande se posicionando contra o uso do imunizante que conseguiram se manter por muitas semanas nas manchetes dos noticiários nacionais e internacionais. Foi graças ao trabalho da imprensa, do Supremo Tribunal Federal (STF) e da mobilização da sociedade que as crianças estão sendo vacinadas. Mas o presidente da República ainda insiste em questionar a vacina.
Por conta dessa situação toda, o mau humor avança entre nós jornalistas. Porque não temos tempo nem recursos para investir nas matérias e, com isso, melhor informar o nosso leitor. Não estou fazendo essa afirmação com base em nenhuma pesquisa. Mas em minhas observações e conversas, e por estar no jornalismo há um bom tempo. Pelas minhas contas, estive envolvido com a reportagem por uns bons 47 anos dos 71 que tenho. Nessa conta incluem-se os quatro anos que trabalhei amarrando pacotes de jornais, dirigindo uma Kombi para entregar os exemplares nas bancas de revista e fazendo outros serviços gerais para a Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, a CooJornal, um dos veículos alternativos que surgiram no Brasil durante a ditadura militar. Foi um tempo muito divertido da minha vida. Na CooJornal, fui contaminado pelo desejo de ser repórter. Comecei a trabalhar como repórter em redação em 1979 e até os dias atuais continuo envolvido com jornalismo. Geralmente, o ambiente fica pesado na redação quando começam a circular boatos de demissões, que na maioria das vezes são confirmados. Houve uma época, que ficou conhecida como passaralho, que os colegas eram demitidos em grandes levas. Depois de um passaralho, a turma corria para o boteco, enchei a cara, chorava as mágoas e falava mal dos chefes. No dia seguinte a vida recomeçava na redação. Hoje, as demissões continuam, agora a conta-gotas, porque restaram uns poucos nas redações. Não existe mais o dia seguinte para o repórter. É tudo uma repetição.
Os jornalistas brasileiros estão fazendo um bom trabalho na cobertura das lambanças de Bolsonaro, em especial os jovens que fazem a cobertura do dia a dia nas redações dos noticiários. Se não fosse isso, as coisas estariam bem piores. Isso é um consenso entre nós. Mas não podemos deixar de ser exigentes com o nosso trabalho e cultivarmos e lutarmos pela chance de avançar nas nossas matérias. Os CEOs das grandes empresas de comunicação não estão nem aí para o jornalismo investigativo. Estão mais preocupados em administrar uma mistura tóxica de entretenimento com jornalismo. O mau humor que avança entre nós é como se fosse uma febre anunciando que o nosso organismo está lutando contra um vírus. Se estamos lutando é um bom sinal. Até porque não existe vacina contra o conformismo.