É real o risco de ser jogado no ralo todo o trabalho de várias gerações de agricultores gaúchos que povoaram as fronteiras agrícolas do Brasil. E as transformaram em cidades, lavouras e agroindústrias, erguendo os esteios econômicos daquilo que chamamos nos dias atuais de agronegócio. A ocupação dessas fronteiras patinou até surgir a soja. Hoje os gaúchos e seus descendentes produzem em alta escala para os mercados externos proteínas animal e vegetal numa área que se estende desde a fronteira com os castelhanos (uruguaios e argentinos), no sul, até o extremo norte do país, avançando pelo oeste através de Santa Catarina e do Paraná e alcançando vastas extensões de terras nos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Rondônia, Pará e Roraima. Os gaúchos espalharam por esse imenso território a sua cultura (existem mais de 2,1 mil Centros de Tradições Gaúchas, os CTGs), suas preferências futebolísticas (Grêmio e Inter têm torcidas numerosas), seus padres e pastores e suas diferenças políticas. Por que tudo isso corre risco?
O povoamento das fronteiras agrícolas foi possível porque bancos internacionais emprestaram dinheiro para o governo brasileiro. Os agricultores enviados a essas regiões receberam a missão de derrubar o mato e estabelecer as lavouras, que no início eram de arroz do seco, a única cultura que brotava naquelas terras. O dinheiro externo continuou financiando o desmatamento até os primeiros anos da década de 80. Foi quando surgiu em uma cidadezinha no interior do Acre, no meio da Floresta Amazônica, um homem chamado Francisco Alves Mendes Filho, mais conhecido como Chico Mendes. Sindicalista, seringueiro e apoiado pelos seguidores da Teologia da Libertação, ele liderou um movimento que entrou para a história como Empate – os seringueiros se abraçavam nas árvores na floresta para impedir que fossem derrubadas. Chico Mendes visitou a sede de bancos internacionais e mostrou que eles estavam financiando a devastação da Floresta Amazônica. A visita do sindicalista aos banqueiros, aliada ao alastramento da conscientização ambiental, provocou uma reviravolta.
Nos anos 90, os bancos internacionais pararam de financiar o desmatamento e começaram a investir na preservação. E ao redor do mundo, especialmente nos países europeus, começou a se consolidar uma mudança de perfil no consumidor, que passou a exigir a conservação ambiental na produção das proteínas animal e vegetal. Esse tipo de consumidor se espalhou pelos quatro cantos do mundo. Milhões de dólares foram investidos em novas tecnologias de produção, como o plantio direto, para atender a esse consumidor. Os colonos gaúchos e seus descendentes herdaram dos tempos do desbravamento das fronteiras agrícolas a imagem de derrubadores de florestas, grandes usuários de agrotóxicos agrícolas e financiadores de garimpeiros em terras indígenas. De 1995 até 2018, milhões de reais foram gastos para desmanchar essa imagem. Em menos de dois anos de governo, os bolsonaristas atiram todo esse investimento pela janela afrontando os compradores internacionais dos produtos brasileiros com práticas contra a preservação ambiental – há matérias na internet.
Aqui é o seguinte. De maneira errada nós jornalistas temos vendido para os leitores a ideia de que o agronegócio envolve praticamente apenas grandes produtores rurais. Não é verdade. São os pequenos e médios, a quem chamamos de “agricultores familiares”, que produzem o grosso da proteína animal vendida para o exterior (frangos e suínos). Eles trabalham de maneira integrada com as agroindústrias, que geram milhares de empregos. Também são responsáveis por boa parte da produção de grãos, ao lado dos médios e grandes produtores. O que isso significa? Simples. Pequenos, médios e grandes produtores, todos vão se ferrar se os compradores internacionais recusarem os produtos brasileiros devido à política do meio ambiente dos bolsonaristas.
Se as lideranças dos pequenos, médios e grandes produtores não se sentarem e conversarem sobre o que está acontecendo e o rolo que virá pela frente estarão cometendo um grande erro. Lembro o seguinte. Agricultura e criação de animais são atividades de alto risco. No caso de um eventual problema com o mercado externo, o agricultor corre o real risco de falir. E se isso acontecer, o banco tomará a terra. E na hora de executar a hipoteca, o banqueiro não perguntará ao agricultor a que partido ele pertence, ou para que time torce. Tudo que escrevi não li em livros ou ouvi falar. Eu estive lá e fiz reportagens, escrevi livros e falei com os agricultores, seus filhos e netos. A maioria desse pessoal nasceu em famílias pobres no Rio Grande do Sul. Arriscou o pouco que tinha no sonho de progredir nas fronteiras agrícolas. Muitos morreram, outros desistiram e os que ficaram vão precisar conversar para não perderem tudo. É simples assim.