Para entender as alianças políticas visíveis feitas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é preciso voltar ao fim de uma tarde de quarta-feira, dia 27 de outubro de 1965, pouco mais de um ano depois que as Forças Armadas deram o golpe militar que derrubou o presidente eleito pelo voto popular João Goulart, o Jango, gaúcho de São Borja. Naquele dia foram extintos os partidos políticos que existiam no país. Foram substituídos pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), que abrigava os parlamentares da situação, e pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que reunia a oposição. Durante todo o regime militar, os parlamentares da Arena foram fiéis ao governo. Fecharam os olhos para as prisões ilegais dos opositores do regime, a tortura dos presos políticos, a censura à imprensa e outros absurdos praticados pelos generais que ocupavam a Presidência da República. Eu quero conversar com os meus colegas, especialmente os jovens repórteres na correria diária nas redações, sobre o que os arenistas ganhavam em troca da sua lealdade e o que os parlamentares do Centrão estão recebendo. Vamos aos fatos, como os editores falam aos repórteres quando eles ficam dando voltas com a sua matéria.
Em troca da sua lealdade, os arenistas eram recompensados com cargos de governador, senador e prefeito (nas capitais e cidades consideradas área de segurança não havia eleição para prefeito, que era nomeado pelos militares) ou recebiam empregos nas empresas estatais e na administração federal, remunerados com polpudos salários. E o que considero o mais importante. Como não existiam eleições diretas para presidente da República, os arenistas tinham a garantia de que o indicado pelas Forças Armadas os manteria em seus cargos. A lealdade da Arena acabou quando o governo militar começou a entrar em decadência, na metade da década de 70, e com isso sumiu a garantia dos chefes do partido de terem cargos à sua disposição na administração do próximo presidente. A democratização do Brasil, em 1985, foi o tiro de misericórdia na lealdade dos partidos aliados com o ocupante da cadeira de presidente da República.
Não é por outro motivo que os parlamentares dos partidos que formam o Centrão pulam do governo que apoiam no primeiro sinal do seu enfraquecimento. Tem sido assim desde 1985, em todos os partidos que ocuparam a Presidência da República. Por que seria diferente com Bolsonaro?
O presidente Bolsonaro faz parte do Centrão e sabe como as coisas funcionam ali. Ele bem que tentou não cair nas mãos dos seus ex-colegas da Câmara dos Deputados. No início buscou alianças com as bancadas temáticas – da Bala, da Bíblia etc. Não deu certo. Apostou que povoando o seu governo com militares da ativa, da reserva e reformados teria o apoio das Forças Armadas para encurralar em um canto do ringue político o Senado, a Câmara e o Supremo Tribunal Federal (STF). As Forças Armadas não o apoiaram. E os militares no governo, principalmente os generais do Exército da ativa, vivem o constrangimento de estarem presos no fogo cruzado entre o Gabinete do Ódio e as instituições do Brasil. Essa é a curta história de como Bolsonaro foi parar nas mãos do Centrão. Ainda não publicamos. Mas a história está aí para mostrar. O acelerado processo de corrosão do prestígio político do presidente acendeu a luz vermelha entre os parlamentares dos partidos que fazem parte do Centrão. Dois fatores aceleram o desprestígio: o primeiro, e que considero o mais grave, foi ele ter comemorado a paralisação das pesquisas da vacina chinesa contra a Covid-19, que já matou mais de 150 mil brasileiros. O segundo motivo virou piada ao redor do mundo: ele ameaçou guerrear com os Estados Unidos, porque os americanos elegeram para presidente Joe Biden (democrata), que ganhou as eleições de Donald Trump (republicano), ídolo do Bolsonaro.
Se a corrosão da imagem política de Bolsonaro aumentar e cair a abaixo de 15%, as 20 e poucas ações de impeachment contra ele que estão na gaveta do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, começam a se mexer. E uma das ações vai andar. E os parlamentares do Centrão vão começar a abandonar o barco, como já fizeram antes. Vão fazer isso porque Bolsonaro não tem na mão a moeda que os generais tinham na época da ditadura militar: a continuidade do governo. O que vou escrever agora ninguém me disse, eu estava lá. Poucas foram as pessoas que aderiram à Arena por ideologia. Foram pelos empregos e pelos cargos públicos. O preço da lealdade deles era poder continuarem ocupando cargos na troca do governo. Como já disse: a democratização do país acabou com isso. Ou seja: os governos eleitos depois de 1985 não têm em caixa a moeda para pagar a lealdade dos seus aliados. Considero uma injustiça nós jornalistas escrever que os parlamentares do Centrão são os únicos. Não são. Basta dar uma olhada na história dos últimos governos. Aqui, quero chamar a atenção dos meus colegas para um fato. Nós jornalistas temos a mania de cunhar uma expressão e a ficar repetindo através dos tempos como se fosse uma verdade absoluta. Isso faz parte da nossa cultura de redação. Mas as coisas mudaram com a proliferação de plataformas profissionais (sites, blog, rádios e TVs) e redes sociais que divulgam fatos que colocam por terra “as verdades das redações”.
Uma verdade das redações é “o toma lá dá cá”, como chamamos o uso de cargos do governo para conseguir apoio. A maneira como colocamos nas nossas matérias é como se essa prática só existisse no Brasil. Não é verdade. Existe em democracias antigas, consolidadas e respeitadas como as dos Estados Unidos e da Inglaterra. O que acontece? Essa e outras maneiras de fazer política são vigiadas pela imprensa livre, que denuncia o que é feito fora da lei e da normalidade democrática. Mas para fazermos o nosso serviço é necessário que sejamos exatos nas nossas informações. E a exatidão das nossas matérias é fundamental dentro de um ambiente povoado por máquinas de fake news. A história é a melhor aliada do repórter para evitar que ele escreva bobagens. Foi graças a nossa ignorância no exercício da profissão de jornalista que cresceram e estão por aí hoje personagens como Bolsonaro e Trump. Não cabe a nós repórteres dizer em quem as pessoas devem votar. Mas informá-las com exatidão sobre quem é o candidato. A história da Alemanha de 1930 continua sendo um exemplo do que acontece quando falhamos. É por aí, colegas.