Se não é a primeira vez na história do Brasil, certamente é uma das raras em que os brasileiros vão passar o Natal com centenas de pessoas acampadas na frente dos quartéis pedido para os militares darem um golpe de estado. Nunca tinha visto isso, e olha que sou velho, 72 anos, 40 e tantos de repórter, mais de 30 vividos em redação de jornal vendo coisas que até Deus duvidaria que existam. Os acampados são seguidores do presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), que não aceitam a derrota do seu candidato, que concorreu à reeleição, para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Culpam as urnas eletrônicas pela vitória de Lula. Dezenas de testes, perícias e laudos técnicos comprovam que as urnas são seguras. Claro que essa história dos acampamentos vai acabar sendo assunto entre os familiares na ceia de Natal. E provavelmente provoque discussões acaloradas e o que chamamos nas redações dos jornais de terceiro turno. Aliás, desde 2018 que dá rolo sempre que as famílias se reúnem. Na época foi por conta da polarização e do acirramento da disputa pela Presidência da República entre Bolsonaro e Fernando Haddad (PT) que aconteceram bate-bocas entre parentes e amigos nos grupos de WhatsApp das famílias e, depois, na ceia de Natal. Os desentendimentos mais severos aconteceram, via aplicativos, na noite de Natal em 2020, em plena pandemia causada pela Covid-19, um vírus que o presidente negava o poder de contágio e letalidade.
Na época, além de duvidar do poder do vírus, o presidente defendia o uso de medicações que comprovadamente não faziam efeito contra a Covid, como a cloroquina. Ou seja, assunto para discutir não faltava. Fui lembrado por um velho político que as famílias brasileiras sempre se dividiram no campo político. Antes do golpe militar que derrubou o presidente eleito pelo voto popular João Goulart, o Jango, do antigo PTB, em 1964, era uma tradição os pais passarem para os filhos o partido ao qual a família era filiada. Naquele tempo não aconteciam casamentos ou namoros entre adversários políticos. Em 1964, quando os militares tomaram o poder, acabaram com os partidos políticos tradicionais e inventaram dois outros: a Arena, que defendia os interesses do governo, e o MDB, que era da oposição. As Forças Armadas ficaram no poder de 1964 a 1985. Nesse período, a repressão política impediu que houvesse uma renovação de quadros partidários. Nos dias atuais, quando escrevemos em nossas matérias que não existem mais líderes políticos do calibre de antigamente, não estamos falando bobagem. Realmente, não houve renovação, porque a ditadura impediu que nascessem as novas gerações de políticos. As lideranças que estão surgindo hoje não têm tempo para se consolidar no cenário político. Antigamente havia tempo para se formar uma liderança porque as coisas aconteciam mais devagar. Por exemplo, uma notícia levava semanas para dar a volta ao mundo. Hoje, ela chega aos quatro cantos da Terra quase instantaneamente.
Portanto, tempo é tudo que os novos líderes não têm para se consolidarem no jogo político. A rapidez com que as notícias circulam pode tornar um desconhecido em um líder político em minutos. Como também podem torná-lo irrelevante no minuto seguinte. Essa é a realidade nos dias atuais. Vou lembrar o seguinte. No auge da pandemia de Covid-19, o então governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que se elegeu graças ao prestígio de Bolsonaro, se posicionou contra o presidente no caso das vacinas. E enfiou goela abaixo do governo a vacina contra a Covid. Doria tentou concorrer a presidente da República e quebrou a cara – há matérias na internet. Hoje, quem lembra dele? O presidente Bolsonaro terá o mesmo destino de Doria quando sair do cargo? Ele já está trabalhando para que isso não aconteça. O seu primeiro movimento foi no sentido de consolidar os acampamentos de bolsonaristas na frente dos quartéis. Por quê? Esses acampados conseguem ganhar espaço na imprensa. A ideia geral é torná-los uma pedra no sapato de Lula. Vejam bem. Se o presidente não tivesse questionado as urnas eletrônicas e sem os acampamentos na frente dos quartéis ele seria assunto na ceia natalina dos brasileiros? Dificilmente. Agora, até quando essa estratégia o manterá nos noticiários é outra história. Uma coisa é certa. Assim que ela se esgotar, Bolsonaro inventará outra para atrair a atenção da imprensa. É assim que tem conseguido sobreviver na disputa política nas últimas quatro décadas como um parlamentar do baixo clero, como são chamados pela imprensa os deputados federais sem expressão política.
Para arrematar a nossa conversa. Nos últimos anos a família brasileira mudou o seu perfil, incorporando novos valores e livrando-se de enraizados preconceitos. Mas uma coisa não mudou. Sempre que se reúnem nas festas de fim de ano três assuntos são os mais presentes nas conversas: futebol, dinheiro e política. Durante o governo Bolsonaro, para evitar brigas e outras situações desagradáveis, muitas famílias proibiram discussão sobre política no WhatsApp e nas reuniões presenciais, especialmente nos almoços e jantares regados com os famosos aperitivos de entrada, cerveja e vinho. Há uma palavra nova nas famílias nos dias atuais: “fake news”. Usam a palavra para dizer que não acreditam nos argumentos que estão ouvindo. Creio que precisamos explicar melhor para o nosso leitor o que são realmente fake news e o perigo que elas representam.