Não há um número confiável. Mas a maioria dos repórteres sabe que uma boa parte dos idosos pobres vive em asilos clandestinos no Brasil. Em Porto Alegre chamamos de “depósitos de velhos”. Imaginem como está a situação. Se nos asilos legalizados o coronavírus tem espalhado mortes sempre que encontra uma oportunidade de se alojar entre os moradores, o que não estará acontecendo nos clandestinos? Onde os velhos são largados pelos seus familiares ou conhecidos e abandonados à própria sorte. Vivem ali os seus últimos anos em um lugar insalubre, sem assistência médica adequada, sem remédios e sendo alimentados de maneira precária. O dono do lugar usa o cartão de aposentadoria do hóspede para pagar a hospedagem. É assim que funciona.
Ninguém me contou que é assim e muito menos eu li em algum relatório. Sou testemunha, como repórter. De 1979 até 2014, tempo que trabalhei em redação de jornal, fiz várias reportagens sobre o assunto. Com destaque para uma feita nos anos 90, em parceria com os repórteres Nilson Mariano e Ricardo Stefanelli e publicada em Zero Hora. E nos últimos anos sigo acompanhando o tema. Não tem como não ficar atento a um absurdo desses. Esse tipo de assunto se classifica entre aqueles que, se nós repórteres não o colocarmos na pauta dos noticiários, ele só aparece quando acontece uma tragédia. E sempre que elas acontecem o asilo é fechado, os idosos são colocados em outros lugares e dono do estabelecimento responde perante a Justiça. Mas logo surgem outros locais clandestinos, porque existe a demanda. É o aposentado tem uma renda mínima garantida pela Previdência Social. Por ser uma renda mínima, o dono do abrigo clandestino garante o seu lucro pelo número de internos. Para tanto, amontoa o maior número de idosos possível no menor espaço que puder. Muitas vezes o lugar é descoberto pela reclamação dos vizinhos devido ao mau cheiro.
Os idosos vão parar nesses lugares pela soma de dois fatores: falta de afeto da família e a questão econômica. Durante os 30 e poucos anos que trabalhei em redação de jornal, por várias vezes eu conversei com os moradores desses lugares. Algumas conversas ficaram gravadas na minha memória. Sabe, colega repórter? Há assuntos que nos acompanham quando saímos da redação. Vez ou outra, eles aparecem para nos tirar o sono. Esse é um deles. Lembro-me de uma conversa que tive com um senhor. Ele era um homem alto, de ombros largos e havia migrado para a Região Metropolitana de Porto Alegre na década de 60 em busca de emprego. Os filhos se espalharam pelo mundo, a mulher faleceu e ele se tornou morador de um asilo clandestino localizado entre Sapucaia do Sul e São Leopoldo. Esse tipo de pessoa a gente não entrevista. Conversa como se estivesse falando com um velho conhecido. A nossa conversa foi sobre os velhos tempos. No final, perguntei o que mais ele sentia falta. Ele tirou do bolso de um casaco surrado o rádio de pilha. E me disse: “Pilha para o rádio”. No dia seguinte, inventei uma história furada para o pauteiro do jornal e voltei lá para levar-lhe as pilhas.
A questão dos idosos pobres favelados, abandonados pelas estradas do interior do Brasil ou amontoados nos asilos clandestinos é muito mais que um número. Não tem como decretar uma lei que obrigue os familiares a ter afeto pelos seus velhos. Mas como repórteres podemos pressionar os governos a terem políticas que evitem que isso continue a acontecer. Não é difícil encontrar um asilo clandestino. Como se dizia nas redações dos tempos das barulhentas máquinas de escrever: “Basta dar um chute em uma pedra para encontrar”. O pessoal que lida com saúde pública pode ajudar. Há investigações nas delegacias esquecidas nas gavetas. Eu sei que a vida de um repórter nas redações de hoje é um inferno. Ele ganha pouco, trabalha demais e o jornal não proporciona recursos para deixá-lo cavar um assunto.
Mas lembro do seguinte. Mesmo nos tempos da fartura de dinheiro na redação, esse tipo de assunto não merecia atenção. Hoje há um fato novo. Por tudo que tenho lido, visto e escutado nos noticiários, ainda não publicamos nada relevante sobre o que está acontecendo nessa crise sanitária causada pelo coronavírus nos asilos clandestinos. Estima-se que a população de idosos brasileira seja de 19 milhões e que o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul sejam os estados com a maior concentração de velhos. Pelo que temos publicado, o vírus só tem atacado os asilos legalizados. Não é estranho? Quem me fez essa indagação foi um leitor. É uma pergunta que nós repórteres vamos ter que responder, né?