Eu fazia parte, nos anos 90, de um enorme contingente de repórteres que torcia o nariz em demonstração de desprezo pelo surgimento e proliferação nos quatro cantos do Brasil das emissoras de TV ligadas aos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e outros órgãos governamentais. A leitura que se fazia na época era de que essas emissoras tinham nascido para falar bem do governo. Daí que as apelidamos de chapa-branca. É sobre isso que vamos conversar. Mas antes de enfileirar os fatos na nossa conversa vou dar uma explicação que considero necessária para quem não é jornalista. Ou é um jornalista que está dando os seus primeiros passos na carreira de repórter. Não sei de onde surgiu a história. Mas ela já circulava pelas redações um bom tempo antes de eu começar na profissão, em 1979. Os jornalistas que apenas descreviam a versão do governo nas suas matérias eram chamados de maneira pejorativa de chapa-branca, numa referência à cor das placas utilizadas pelos veículos governamentais. O auge do uso dessa expressão foi durante o regime militar de 1964 a 1985. Hoje, o seu uso é mais comum entre os velhos repórteres. Vamos aos fatos.
O tempo se encarregou de mostrar que a avaliação que se fazia sobre as TVs chapas-brancas eram equivocadas. Por quê? Seja lá quais tenham sido os motivos que levaram ao surgimento desses canais, o aperfeiçoamento do processo de democratização que se iniciou em 1985 deu a eles um papel importantíssimo. Vou citar apenas fatos recentes. Nos dias atuais, algum colega pode imaginar como seria tocar o seu trabalho do dia a dia se não existisse uma TV Senado? Por ali desfilam os acontecimentos que estão mudando os rumos da história do Brasil, como foi o caso das sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do Senado, a CPI da Covid. As imagens da TV Senado foram retransmitidas por dezenas de outras emissoras ao redor do mundo. Os índices de audiência foram enormes – há matéria na internet. Outro fato. Nos primeiros 10 dias de dezembro aconteceu no Foro Central de Porto Alegre (RS) o julgamento dos quatro réus responsabilizados pela morte de 242 pessoas e ferimentos em outras 636 pelo incêndio da Boate Kiss, em 2013, na cidade de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul. A transmissão pelo canal do Tribunal de Justiça foi vista em 18 países e teve 2,6 milhões de acessos – há matéria na internet. Os julgamentos feitos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e transmitidos pela TV Justiça são uma importante fonte de informações para os jornalistas, em especial dos detalhes que acontecem durante as sessões. Foi acompanhada como se fosse o capítulo final de uma novela, em 2014, a conclusão do julgamento do Mensalão, como ficou conhecido o desvio de verbas públicas usada para comprar o voto de parlamentares – há matéria na internet.
Citei esses fatos. Poderia me estender em detalhes e citar dezenas de outros. Mas não é esse o foco da nossa conversa. Hoje, entre os jornalistas, há dois tipos de conversa sobre essas TVs. A mais comum é que elas transformaram em artistas ministros, procuradores, juízes, desembargadores e parlamentares, que agora capricham nas suas falas, porque sabem que serão vistos por dezenas de milhares de pessoas. Não concordo com essa avaliação, por ser muito limitada. Concordo com a segunda versão que existe entre nós sobre a exposição que essas TVs dão às falas do pessoal da Justiça, Senado, Câmara e outros órgãos da administração pública. As transmissões mostram como funcionam as entranhas desses poderes. Essas informações são preciosas para o jornalista, que pode usá-las para contextualizar com maior profundidade a sua matéria e, com isso, torná-la mais interessante ao leitor. Vejam bem. Antigamente, como um pequeno jornal do interior do Brasil conseguiria enviar uma equipe até Brasília (DF) para fazer a cobertura de um julgamento no STF ou de uma sessão na Câmara dos Deputados? Não tinha como, porque faltava dinheiro, entre outras coisas. Hoje, o jornalista pode assistir a esses eventos pela TV e fazer um relato muito recheado de informações para o leitor local. Importante. Não são apenas os jornais e rádios do interior do Brasil que não têm dinheiro para financiar uma cobertura em Brasília. Atualmente, os grandes veículos de comunicação também lidam com falta de recursos. Mas mantêm o bom nível da cobertura dos bastidores da política em Brasília graças às TVs do Senado, da Câmara e da Justiça. Vou lembrar um alerta dado por um colega de São Paulo. Ele disse que há poucos anos a formação de um comentarista político demorava uma década, porque ele precisava fazer fontes confiáveis, o que não é fácil, e entender como as coisas funcionam. Hoje, fui lembrado por um colega, a consolidação das emissoras de TV oficiais, somado ao aperfeiçoamento das assessorias de imprensa, tornaram bem mais rápida a formação de um comentarista político. Se essa formação é melhor ou pior, é outra história.
Pelo seu alto custo, as TVs oficiais se restringem às capitais e algumas escassas cidades de porte médio. Mas graças às plataformas de comunicação disponíveis nas redes sociais é possível assistir às reuniões de várias câmaras de vereadores espalhadas pelo Brasil. As conversas entre os vereadores só vão parar nos noticiários nacionais quando acabam em soco. Ou em fatos curiosos, como aconteceu na Câmara Municipal de Nova Veneza, pequena cidade no sul de Santa Catarina. No final de outubro foi lido em sessão dos vereadores a lista dos 15 primeiros prêmios de uma rifa feita por uma escola para arrecadar fundos. Os prêmios eram porcos gordos, queijos, galinhas chocas e iguarias feitas pelas famílias dos alunos. Os vereadores caíram na risada com os prêmios oferecidos. Por ter o episódio viralizado nas redes sociais, os alunos da escola venderam todos os números de rifa. Tenho dito que a história é o melhor professor de jornalismo que conheço. No caso das TVs oficiais, graças a uma soma de circunstâncias, elas se tornaram relevantes. Isso é um fato. E uma das regras do bom jornalismo é não brigar com a notícia.