Foi na luta pela reforma agrária, pressionando o governo federal com ocupações de fazendas, que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) abriu caminho para a consolidação do agronegócio no Brasil, considerado um exemplo do capitalismo bem sucedido no campo. Por estarem em trincheiras ideológicas opostas, o agronegócio empunhando a bandeira do capitalismo, e o MST, a do socialismo, essa história foi convenientemente esquecida pelos dois lados. Mas ela aconteceu. Eu estava lá e a registrei. Não existe um registro contextualizado do que aconteceu. O que há são fragmentos escritos no meio de capítulos de livros e de reportagens. Hoje a principal vitrine do agronegócio são as feiras, como a Expodireto, da Cotrijal, em Não Me Toque, pequena cidade agrícola no Norte do gaúcho. Nesse tipo de evento são exibidos os últimos avanços na tecnologia para aumentar a produção agropecuária e os equipamentos de última geração. Usando a linguagem dos agricultores para definir novidades: “o último grito em máquinas”. A vitrine do MST são as manifestações políticas ao lado de outros movimentos sociais e pastorais. Lá se pode ouvir o grito de guerra dos Sem Terra: “reforma agrária já!”.
Vamos juntar os fatos para contar essa história. Em 1973, houve uma explosão no preço da soja nos mercados internacionais. Nas regiões agrícolas do Brasil, principalmente no Sul, as lavouras de soja começaram a se expandir usando tecnologia de ponta – equipamentos e produtos químicos. Esses insumos modernos causaram um enorme desemprego entre os trabalhadores rurais. E a valorização da terra acabou, fascinando os pequenos e médios proprietários, que venderam as suas glebas. Os pequenos proprietários e os trabalhadores rurais desempregados formaram o maior contingente da história de êxodo rural no país. No contingente do êxodo rural, nasceu o MST. E o plantador de soja deu origem ao agronegócio, como é conhecido hoje. Nos anos 80, os sem terra eram, praticamente, um movimento clandestino, porque o Brasil era governado pelo pessoal das Forças Armadas, que havia dado um golpe de Estado em 1964, derrubando o presidente da República João Goulart (do antigo PTB). Para os militares, reforma agrária era coisa de comunista. Logo depois do golpe, eles destroçaram todas as organizações camponesas que lutavam pela terra, tipo o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master) . Toda essa fase da história contei no livro A Saga do João Sem Terra.
Em 1985, as Forças Armadas deixam o poder para os civis, e nasceu a Nova República, que terá o seu ponto alto em 1988, com publicação da nova Constituição. Com a democratização do pais, o MST, que havia nascido em 1979 no Acampamento dos Sem Terra da Encruzilhada Natalino, na beira da estrada que liga Ronda Alta a Passo Fundo , tornou-se um movimento de massa e nacional. O agronegócio se expande, consolidando as novas fronteiras agrícolas, regiões povoadas por agricultores, principalmente gaúchos, no sertão brasileiro. Conto a história em dois livros: O Brasil de Bombachas, publicado em 1995, que descreve o trabalho dos pioneiros nas novas fronteiras agrícolas. Outro publicado em 2011, onde descrevo a vida dos filhos dos pioneiros. Da metade para o fim da década de 80, o MST e o agronegócio tinham um inimigo em comum: os proprietários de grandes extensões de terra, que eram do tempo em que o poder de uma família era medido pela extensão da fazenda. Esses fazendeiros tradicionais tinham sido um dos esteios do golpe de Estado de 1964. Eles odiavam o MST por questões ideológicas. E não gostavam dos plantadores de soja por considerá-los pessoas sem educação , sem tradição de família e uns novos ricos exibidos. Na época, existiam duas maneiras de o sojicultor plantar nas terras de um fazendeiro tradicional: casando-se com a filha dele ou pagando um arrendamento com preços absurdos e sem garantia jurídica. Só para se ter uma ideia de como as coisas eram. Nessa época, a maioria dos parlamentares estaduais e federais do Rio Grande do Sul eram de origem de famílias de fazendeiros. Os plantadores de soja só chegam ao parlamento nos anos 90. Pouco antes da constituição de 1988, a Nova República lançou o Programa Nacional de Reforma Agrária, que continha um artigo que dava poderes ao governo federal de desapropriar – pagando em bônus – toda a terra ociosa para assentar colonos. Eu lembro que fiz dezenas de reportagens sobre esse artigo, que causou um baita rolo por ter sido mal redigido e incluir até cidades como terras ociosas. O MST aproveitou a oportunidade e focou a sua ação no que foi chamado de “o coração do latifúndio”, regiões onde os fazendeiros tradicionais tinham grandes extensões de terras.
O MST agiu no interior de São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No território gaúcho, aconteceu a primeira grande invasão no “coração do latifúndio”, que teve repercussão em vários países. A ocupação foi em uma fazenda em Cruz Alta, eu estava lá. E passei muito tempo explicando para os meus colegas repórteres estrangeiros, principalmente os europeus, o que estava acontecendo. Houve confrontos entre os colonos, os fazendeiros e as tropas da Brigada Militar (BM) – como os gaúchos chamam a polícia militar. Para escapar da desapropriação, os fazendeiros tradicionais começaram a maquiar as suas terras, alugando tropas de gado e fazendo lavouras da noite para o dia. O truque não durou muito tempo. A ação do MST derrubou o preço dos arrendamentos de terra. A oportunidade foi aproveitada pelos plantadores de soja. Hoje a Região de Cruz Alta é uma das maiores produtoras de grãos do Brasil. O que aconteceu em Cruz Alta se repetiu nos outros estados.
Portanto, a ação do MST contra os proprietários tradicionais de terra, além de ter barateado o custo do arrendamento, trouxe segurança jurídica para o arrendatário, porque toda a operação era documentada em contratos. Antes era na palavra ou no fio do bigode, como se costuma dizer nos sertões do Brasil. Ainda existe um episódio bem mais antigo que une o MST e o agronegócio. Em 1978, na reserva dos índios caingangues, em Nonoai, pequena cidade agrícola no Norte do Rio Grande do Sul. O cacique Nelson Xamgrê lidera uma rebelião indígena para expulsar 1,5 mil famílias de agricultores que viviam como intrusos nas terras caingangues. O caso repercutiu no país inteiro. Eu ainda não era repórter, mas estive lá. E a história do que aconteceu foi registrada no livro A Guerra dos Bugres, escrito em 1986, em parceria com os repórteres André Pereira e Humberto Andreatta. Os agricultores expulsos pelos índios formaram 34 acampamentos na beira das estradas, um deles na Encruzilhada Natalino, onde nasceu o MST e de onde partiram vários ônibus com agricultores levados pelo governo federal para povoar novas fronteiras agrícolas no Mato Grosso. Uma dessas fronteiras chamava-se Lucas do Rio Verde, hoje uma cidade símbolo do agronegócio. Em 1995, eu encontrei e conversei com vários ex-acampados da Natalino que hoje são grandes produtores de soja em Mato Grosso. Aqui chamo a atenção dos meus colegas repórteres calejados e dos novatos. Histórias como essas precisam ser contadas. É nossa obrigação encontrá-las.