Assim como o jogo do bicho é ilegal, e o brasileiro tem o seu bicheiro, onde faz a sua aposta, ele também tem o seu doleiro. Os dois fazem parte da cultura nacional, principalmente a do Rio de Janeiro. O jogo do bicho nasceu como uma aposta inocente em 1892, como forma de arrecadar dinheiro para um zoológico. E hoje se tornou uma organização criminosa que arrecada milhões diariamente e é a principal fonte de corrupção policial. O doleiro nasceu do controle cambial feito pelo governo federal. Por muitos anos, os doleiros foram a única fonte de as famílias conseguirem dólares acima das cotas impostas pelo governo para fazer suas viagens para o exterior ou enviar recursos aos filhos que estudavam nas universidades ao redor do mundo. Nos anos 90, o jogo do bicho levou duas pauladas e precisou se modernizar e diversificar para sobreviver. Em 1993, a juíza carioca Denise Frossard mandou prender os 14 maiores bicheiros do Brasil, entre eles Castor de Andrade ( falecido em 1997) – há uma abundância de material na internet sobre as prisões. No ano seguinte, o governo federal, por meio da Caixa Econômica Federal, lança no mercado diversas loterias, tipo Meca Sena e outras. Os bicheiros sobreviveram. Implantando máquinas caça-níqueis, loterias clandestinas e financiando outras atividades criminosas, tipo tráfico de drogas. Acompanhei a história da organização do jogo do bicho desde o final dos anos 80, na época fiz uma série de reportagens chamadas Os Senhores do Jogo do Bicho e tenho me atualizado constantemente no assunto.
Os doleiros também tomaram uma paulada. Foi com a consolidação do Plano Cruzado, lançado no final dos anos 80. Ele acabou com a hiperinflação, valorizou o real, desvalorizou o dólar e manteve a economia em alta por mais de duas décadas. Isso afastou a classe média dos doleiros. O cliente que ficou no doleiro foi aquele que usava os seus serviços de legalizar o dinheiro do caixa dois das empresas ou para pagar propina para parlamentares e agentes do governo. O primeiro grande escândalo envolvendo doleiros foi o do Banco do Estado do Paraná (Banestado). Por meio da conta CC5, enviaram US$ 120 bilhões, de maneira ilegal, para fora do país – lembro que, na época, conheci um procurador da República chamado Celso Três, que trabalhava em Cascavel, cidade agroindustrial do Oeste do Paraná colonizada por gaúchos. Ele foi uma das autoridades que denunciaram esse esquema. Foi aí que entraram no cenário nacional doleiros como Alberto Youssef, delator da Operação Lava Jato, e Dario Messer, que foi denunciado agora na Operação Cambio, desligo. Cascavel fica próxima à fronteira com a Tríplice Fronteira – Brasil, Paraguai e Argentina. No lado paraguaio, fica Ciudad Del Este, onde os doleiros são o principal esteio das organizações criminosas que operam na área. Desde 1984 ando pela região. Volto lá de dois em dois anos, a última vez foi em 2016. Tenho um livro publicado sobre as organizações criminosas de lá, chamado País Bandido.
O que descrevi é uma síntese de como duas organizações, os bicheiros e os doleiros, cresceram, se modernizaram e se tornaram poderosas. Agora vamos ver o que não mudou. Tanto os bicheiros quanto os doleiros operam no sistema da confiança. Por exemplo: uma pessoa pode chegar em qualquer lugar e fazer uma aposta do jogo de bicho de grande valor. Se for premiada, ela tem a garantia que será paga, porque os bicheiros têm um sistema chamado “descarga” – que é um grande banqueiro do jogo que garante o pagamento de qualquer aposta feita em bancas de outros bicheiros que estejam ligados a ele. O sistema dos doleiros também tem a sua descarga – aquele que garante a operação. Dario Messer é um deles. Aliás, não é por outro motivo que ele é chamado por Youssef de “doleiro dos doleiros”. Se não existissem as “descargas”, seria impossível a capilaridade dos dois sistemas: doleiros e bicheiros. Qualquer um pode abrir a sua banca de bicho ou seu negócio com dólar, desde que esteja ligado a um grande operador que garanta o seu negócio. Os bicheiros que a juíza Frossard prendeu foram substituídos por outros, e o sistema seguiu funcionando. Assim como Dario Messer, que vive no Paraguai, será substituído por outro. E como é que a confiança é garantida no sistema operado pelos bicheiros e dos doleiros? Pelos pistoleiros que garantem que todos cumpram com seus compromissos financeiros. Agora vou contar uma história perdida no tempo. Nos anos 90, eu conheci o atual presidente do Paraguai, Horácio Carpes. Na época, ele operava pequenas indústrias de cigarros, conhecidas como tabacaleiras, que contrabandeavam sua produção para o Brasil. Para minha surpresa, em uma década ele se tornou um grande fabricante de cigarros e presidente do Paraguai. Na semana passada, ele derramou elogios ao Dario Messer. A expansão dos negócios do Carpes foi financiada pelo Messer? Essa pergunta será respondida pelo andamento das investigações da Operação Cambio, desligo que é um braço da Lava Jato e foi autorizada pelo Justiça Federal do Rio de Janeiro. Aliás, o Rio é o endereço dos maiores bicheiros do Brasil que têm interesses nas favelas onde as quadrilhas são abastecidas de drogas, armas munição e cigarros falsificados vindos do Paraguai. Interessante, né?