Logo depois da eleição de Fernando Collor de Mello para a Presidência da República, em 1990, tudo que acontecia em Maceió, capital de Alagoas, era manchete nos grandes jornais. Collor foi o primeiro presidente civil eleito pelo voto direto depois da Ditadura Militar que governou o país de 1964 a 1985. Ele tinha sido prefeito nomeado da cidade entre 1979 a 1982. E sua família era dona da maior empresa de comunicação do estado (jornal, rádios e TVs coligadas à Rede Globo). Logo após a posse de Collor houve uma chacina em Maceió e eu fui um entre dezenas de jornalistas que foram mandados para lá para cobrir os desdobramentos do caso. Não lembro a data e os detalhes com exatidão. Mas lembro de uma frase dita por um juiz que virou a manchete da minha reportagem: “Em Maceió não tem bala perdida. Todas têm um nome.” Na ocasião levantei um monte de pautas que me asseguraram várias viagens pelo interior dos estados do Nordeste para entrevistar pistoleiros e outros personagens interessantes. Fazia parte da tradição política dos “coronéis” nordestinos as suas famílias terem um pistoleiro de confiança. Foi nesse contexto que ouvi falar pela primeira vez o nome do hoje senador Renan Calheiros, 65 anos (MDB-AL). Escrevi esse nariz de cera para dizer Calheiros é bom de briga e não deve decepcionar o presidente da República Jair Bolsonaro, 66 anos (sem partido), que o escolheu como inimigo político número um por ser ele o relator da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19, a CPI da Covid.
Na semana passada, durante o depoimento do ex-secretário da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) Fabio Wajngarten na CPI, um dos filhos parlamentares do presidente da República, o senador Flávio Bolsonaro, do Rio de Janeiro, entrou na sala da comissão e chamou Calheiros de “vagabundo”. O senador relator da CPI retrucou chamando o seu colega do Rio de ladrão pelo seu envolvimento no escândalo da rachadinha – há matéria na internet. Na quinta-feira (14/05), o presidente da República foi a Maceió acompanhado pelo seu aliado político e presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e do hoje senador Fernando Collor, para inaugurar moradias populares. Na ocasião disparou desaforos contra Calheiros e também o chamou de “vagabundo”. Sempre que tem sido atacado pelos bolsonaristas, Calheiros tem mostrado a placa que fica na sua frente na mesa na CPI, na qual o seu nome foi substituído pelo número 425.711, o número de brasileiros mortos pela Covid-19. Não sei de onde o senador tirou a ideia de trocar o seu nome pelo número de mortos. Mas ela lembra o principal objetivo da CPI, que é buscar o responsável pela lambança que se tornaram as ações do governo federal na pandemia, causando a morte de pacientes nos hospitais de Manaus (AM) e no interior do Pará por falta de oxigênio hospitalar, o colapso na saúde pública e privada de 25 dos 27 estados no início de maio, além dos quase meio milhão de mortos até agora.
Na quarta-feira, dia 19, deve ir à CPI da Covid depor como testemunha o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o general da ativa do Exército responsável por tornar política de governo o negacionismo do presidente Bolsonaro em relação ao poder de contágio e letalidade da Covid-19. O general está protegido por um habeas corpus concedido pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), que permite que ele se recuse a responder perguntas que possam servir de provas contra ele – há matéria na internet. Aqui é o seguinte. Nós jornalistas sabemos que a opinião pública de hoje é formada pelas imagens. Portanto, vamos nos concentrar na imagem do interrogatório do general pelo senador Calheiros. Pazuello responderá para um interrogador que tem uma placa na sua frente com o número de mortos causados pela pandemia. É uma imagem forte. Lembro o seguinte: a maioria dos brasileiros tem um parente, conhecido ou amigo que foi uma das vítimas da pandemia. Portanto, diferentemente das outras CPIs, essa diz respeito à maioria dos brasileiros. A política do governo Bolsonaro em relação à pandemia é genocida. E o principal implantador dessa política foi Pazuello. E o resultado dela é o número que substitui o nome do senador Calheiros na placa. “É simples, assim”, como costuma dizer o general.
O presidente Bolsonaro pode espernear à vontade. Mas o seu general vai responder as perguntas feitas por um senador que trocou o seu nome pelo número de mortos pela pandemia. Não interessa se Pazuello vai reivindicar a proteção do habeas para não responder. O fato é que ele está falando com um número. Essa é a ideia. Acompanho a carreira política do senador Calheiros desde a época da eleição de Collor para presidente da República. Ele sabe jogar o jogo da política. Recua quando não tem chance de vencer. E sempre deixa uma porta aberta para o seu adversário quando vence uma disputa, porque sabe que o inimigo de hoje pode ser o aliado de amanhã. Só comecei a me interessar pela carreira política de Bolsonaro quando ele se elegeu presidente. Até então, como a maioria dos jornalistas, para mim ele era um deputado federal exótico e saudosista da Ditadura Militar (1964 a 1985). Uma pessoa que na falta de matéria para o jornal sempre tinha um absurdo para dizer que acabava virando manchete. O projeto político do presidente da República é o bem-estar da família dele, principalmente dos seus três filhos parlamentares: Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador do Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal por São Paulo. Bolsonaro sempre teve alguém que faz o serviço sujo para ele e que é descartado quando se torna um problema. A sua bandeira política é “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”.
O general Pazuello é um hoje um problema para Bolsonaro porque pode simplesmente dizer que praticou a política genocida a mando do presidente. Como disse o general: “um manda, outro obedece”. Para o senador Calheiros, o general é uma chance de colocar a digital do presidente da República na morte de quase meio milhão de brasileiros. Como vamos contar essa história para o nosso leitor? Sendo cautelosos e olhando bem nos cantos escuros desse caso e tomando cuidado para não pisar nas dezenas de cascas de bananas que foram espalhadas pelo chão à espera do pé desavisado de um repórter. O que nós repórteres precisamos ter bem claro em nossas mentes é que não estamos frente a uma disputa política, que é importante para a democracia porque fortalece a musculatura das instituições. Nós estamos frente a um caso de polícia. Procuramos o autor de um genocídio de quase meio milhão de brasileiros. Como dizia um velho repórter de polícia que conheci na redação do jornal nos anos 80. “Ó meu, fica esperto: a bronca é caso de polícia e não de política”.