Por conta da decisão do ministro Dias Toffoli, 56 anos, do Supremo Tribunal Federal (STF), de determinar a prisão dos quatro condenados pelo incêndio da Boate Kiss, na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, a maior tragédia da cidade de Santa Maria, na qual morreram 242 pessoas e 636 ficaram feridas, lembrei-me de uma história em que estive envolvido quando participava da cobertura desse caso. Eram mais de 10 horas de trabalho diário, tal a intensidade dos acontecimentos que atraíram jornalistas de vários cantos do mundo. Certa noite, fazia parte de um grupo de uns 30 repórteres que jantavam em um restaurante da cidade. À medida que as garrafas vazias começavam a se empilhar sobre a mesa, começamos a rir e falar alto. De repente, um senhor, que estava sentado no fundo do restaurante, levantou-se e caminhou até a nossa mesa. Não causou estranheza porque estávamos acostumados com as pessoas virem conversar conosco sobre o incêndio. Pensei que era mais um que queria contar uma história. Não era. Ele foi chamar a nossa atenção. Perguntei-lhe se estava tudo bem. Ele respondeu: “Do que vocês estão rindo, da nossa desgraça?” Virou as costas e foi embora.
Houve um silêncio na nossa mesa. Lembrei-me que dias antes uma estudante havia tido um ataque de pânico dentro de um ônibus. E outros incidentes semelhantes se repetiram pela cidade. Conclui que a população de Santa Maria estava traumatizada, com os nervos à flor da pele. E que eu não estava envolvido na cobertura de apenas mais uma de tantas tragédias que permearam a minha longa carreira de repórter, repleta de conflitos agrários sangrentos, acidentes aéreos, guerra civil de Angola e outras calamidades. A cobertura da Kiss era diferente tudo que já tinha feito, porque penetrou profundamente na população da uma cidade. Portanto, o tempo da solução do caso é muito importante para os parentes das vítimas e os santa-marienses de um modo geral. Considerando a fase do inquérito policial e do processo, o caso está caminhando há mais de uma década na Justiça. É um tempo longo demais. Como me disse certa vez o pai de um estudante morto no incêndio. “É complicado cruzar pelas calçadas da cidade com alguns dos culpados”. A maioria dos parentes das vítimas só torce para que esta história tenha um ponto final e que possam ter o direito de chorar pelos seus filhos em paz. Sou um velho repórter estradeiro, 73 anos de idade, mais de quatro décadas cavando reportagens pelos sertões do Brasil e em países vizinhos. E o que escrevi não é opinião. É o resultado das conversas que tive com familiares das vítimas nesses anos todos. E a história que contei da mesa do restaurante foi um resumo do que aconteceu. E a tenho repetido sempre que há uma oportunidade, em palestras para colegas e nos meus textos. Por quê? Por entender que ela não pode ser esquecida.
A decisão do ministro Toffoli é um pequeno e importante passo na longa caminhada do processo na Justiça. Claro, os réus têm o direito de recorrer e os seus advogados vão providenciar para que isso aconteça. É do jogo. Lembro da grande expectativa que tomou conta dos parentes no dia 1º de dezembro de 2021, quando o juiz Orlando Faccini Neto deu início ao júri no Foro Central de Porto Alegre que julgou os acusados pelo incêndio. O julgamento terminou no dia 10 e sentenciou os proprietários da Kiss, Elissandro Spohr, 38 anos, a 22 anos e seis meses de prisão, e seu sócio Mauro Londero Hoffman, 56 anos, a 19 anos e seis meses. Também foram condenados o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo Jesus dos Santos, 41 anos, e o produtor musical Luciano Bonilha Leão, 44 anos, ambos a 18 anos de prisão. Acompanhei todo o julgamento pela TV e fiz várias ligações trocando ideias sobre o andamento do júri com familiares das vítimas e colegas repórteres espalhados pelas redações. Os advogados dos condenados começaram a agir imediatamente após o pronunciamento das sentenças. Conseguiram anular o julgamento alegando que teriam acontecido várias irregularidades, uma delas seria uma reunião entre o juiz com os jurados sem a presença da defesa. O Ministério Público recorreu e o caso tramitou até o STF. Resumindo a decisão do ministro Toffoli. Ele decidiu que os advogados de defesa deveriam ter recorrido contra as irregularidades alegadas durante o julgamento. Conversei sobre a decisão do ministro com o pai de uma estudante da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) que morreu no incêndio. Ele é peão de estância, trabalhador rural. Disse que a decisão é um passo importante rumo ao fim dessa história.
Até a tragédia da Kiss, a maioria dos pais, entre os quais me incluo, preocupava-se com a segurança dos filhos que saíam à noite para se divertir quando eles estavam do lado de fora das casas de show. Jamais imaginavam que o perigo que seus filhos corriam no lado de dentro, que esses estabelecimentos eram ratoeiras cheias de armadilhas que se tornariam mortais em caso de um acidente. Na época, fiz uma reportagem abordando o assunto. Um dos efeitos do caso Kiss foi um “aperto” das autoridades sobre os empresários do setor de entretenimento para revisarem a segurança dos seus negócios. Na cara dura, como diziam os repórteres que faziam a cobertura de assuntos policiais nos jornais, o lobby dos empresários conseguiu flexibilizar as novas regras de segurança que foram criadas. Atualmente, como anda a segurança das casas noturnas no Rio Grande do Sul? É um assunto que a imprensa não dá a mínima bola. O foco das coberturas é nas atrações e outras badalações. Abordei este assunto em uma conversa online que tive com pauteiros de jornais do interior do Brasil. Na ocasião, lembrei que, desde o tempo que escrevíamos as nossas matérias molhando a ponta de uma pena no tinteiro até os dias atuais, alguns assuntos só passam a fazer parte da pauta dos noticiários depois que acontece uma tragédia. Pode ser feito diferente, eu perguntei. A resposta que recebi foi um sonoro “não”. Alegaram não poderem pegar um técnico pela mão e levá-lo a uma casa noturna para fazer uma vistoria. Respondi que não se tratava disto. Mas de pressionar as autoridades para que fizessem as inspeções. Falei a eles das conversas que tive nas quatro semanas que fiquei enfiado dentro da prefeitura de Santa Maria para entender como funcionava a fiscalização das casas noturnas. Entre as pérolas que descobri: o setor de fiscalização tinha sido projetado para impedir que os fiscais trocassem ideias entre si. Quem pensou nessa estratégia a fez na melhor das intenções. Acreditava que assim evitaria “troca de figurinhas” entre os fiscais, ou seja, corrupção.
Para arrematar a nossa conversa. Qual será o próximo passo do caso Kiss? Tudo indica que os advogados irão recorrer, um direito constitucional e uma obrigação deles para com os seus clientes. Seja lá o que fizerem, a decisão do ministro Toffoli é uma oportunidade para a imprensa voltar a se interessar pelo caso Kiss. É fato que as casas noturnas continuam cheias e nós jornalistas não sabemos as condições das instalações. Vamos esperar acontecer outra Kiss?