Confesso que não levei a sério as previsões da ascensão da extrema direita de Marine Le Pen, 55 anos, nas eleições legislativas da França. Afinal das contas, durante a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945) as tropas da Alemanha nazista, comandadas por Adolf Hitler, e da Itália fascista, de Benito Mussolini, ocuparam o território francês (entre 1940 e 1944), submetendo a população a trabalho escravo, fuzilamentos sumários e outras atrocidades que podem ser encontradas em livros, documentários e museus da história desse conflito que foi responsável por 70 milhões de mortos, 600 mil franceses. Esse tipo de violência é lembrado anos afora. Reforcei a minha desconfiança em relação às previsões pelo fato do pai de Marine, Jean-Marie Le Pen, 96 anos, ser um negacionista do Holocausto (a morte de 6 milhões de judeus, ciganos e outras minorias nos campos de concentração nazistas) e um seguidor declarado de Hitler. Os resultados do primeiro turno (30/6) das eleições legislativas mostraram que eu tinha cometido um erro: o Reagrupamento Nacional (RN), da extrema direita, conseguiu o primeiro lugar, fazendo 33% dos votos, e a previsão era de que no segundo turno, no último domingo (7/7), faria cadeiras suficientes (285) no parlamento para indicar o primeiro-ministro. O presidente da França, Emmanuel Macron, costurou um acordo com a esquerda e a direita para reverter o favoritismo da extrema direita. Teve sucesso: a esquerda ficou 182 cadeiras, Macron com 168, Le Pen com 143 e outros partidos com 39.
A respeito da vitória da esquerda, Le Pen disse que ela se deveu às manobras de Macron e que apenas conseguiu adiar, por algum tempo, a sua chegada e a dos seus aliados ao poder. Não vou falar sobre o futuro do acordo do presidente francês. Muito menos sobre a pressão sobre o governo às vésperas das Olimpíadas de Paris, que começam no próximo dia 26. São assuntos que vêm sendo tratados com muitos detalhes pela imprensa diária. Vou conversar sobre a técnica da extrema direita de esconder suas verdadeiras intenções. Vamos a nossa conversa. Le Pen disse que a derrota nas eleições apenas adiou a sua chegada ao poder na França. Foi arrogância? Não, sua certeza vem de um minucioso trabalho que está fazendo perante a opinião pública sobre a imagem da extrema direita. Usando o linguajar dos tempos das barulhentas máquinas de escrever nas redações: ela está vestindo “o lobo em pele de cordeiro”. Lembro-me que quando estive na Guerra Civil de Angola, na década de 90, conversei muito com um colega francês sobre vários assuntos. Um deles era a respeito das recordações das famílias sobre os acontecimentos da Segunda Guerra. Ele me disse que, à medida que as pessoas que viveram aquele período morriam, levavam com elas as memórias dos horrores da guerra e interrompiam a tradição oral dos velhos de contar a história para as novas gerações. O pai de Marine, Jean-Marie, tinha 12 anos quando as tropas nazistas ocuparam a França. Ele sempre contou a versão dos alemães e italianos sobre a Segunda Guerra. Uma versão que não interessa mais ser lembrada por Marine. Em linhas gerais, a extrema direita francesa diz que a sua principal bandeira é impedir a entrada de imigrantes para proteger os empregos dos franceses. É o tipo de argumento que funciona, porque o avanço tecnológico está substituindo em alta velocidade a mão de obra e os novos empregos que cria exigem um trabalhador altamente qualificado, o que na maioria das vezes não é o caso de quem foi desempregado pelas novas tecnologias. Muito menos dos imigrantes, que em sua grande maioria são de origem de países do Terceiro Mundo, onde falta tudo. A fato é que a atualização técnica exigida do trabalhador não é uma tarefa simples de resolver. Atirar a culpa nos imigrantes é uma saída mais fácil, e que funciona. Citei o caso dos imigrantes como exemplo. Nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump, que busca um novo mandato possivelmente contra o atual presidente Joe Biden, além de chamar os imigrantes de “ladrões dos empregos”, adiciona a acusação de “sanguinários”.
Não foi Marine Le Pen e muito menos Trump que inventaram a técnica de “vestir o lobo em pele de cordeiro” para esconder a verdade sobre a extrema direita. Ela foi aperfeiçoada nos anos 30 pelo ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels. Para entender o que Goebbels fez é necessário pesquisar os depoimentos dados pelos criminosos de guerra no Julgamento de Nuremberg. Os comandantes das Forças Aliadas tentaram descobrir como cidadãos comuns da Alemanha foram convencidos por Goebbels a se tornarem criminosos. Há outra técnica que também está sendo usada para esconder a verdade sobre o perigo da extrema direita. Vender a ideia de que a direita e a extrema direita são a mesma coisa. Vou citar um exemplo recente. No fim de semana (7/7), aconteceu um encontro no litoral de Santa Catarina entre o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) e o atual presidente da Argentina, Javier Milei. A imprensa inicialmente chamou a reunião de encontro da extrema direita e terminou dizendo que era da direita. São duas coisas diferentes. Mas que são ditas para os leitores como se fossem sinônimo. Inclusive, até Bolsonaro vem pregando que é de direita. Não, ele é de extrema direita e sempre defendeu o golpe de estado como um meio de chegar ao poder.
Não tenho dúvidas de que Le Pen tem chances reais de chegar à presidência da França. Porque a estratégia de “lobo em pele de cordeiro” que está usando é eficiente e, portanto, pode funcionar. Mais ainda nos dias atuais, em que há uma efetiva e organizada reinvenção da extrema direita ao redor do mundo. Não há como pregar ao lado de uma notícia um estudo sobre a extrema direita. Mas temos que ser precisos e explicar ao leitor que a direita é uma coisa. E a extrema direita é outra. Já é um bom começo.