O assunto está nas manchetes dos noticiários. O diretor-geral da Polícia Federal (PF), delegado Paulo Maiurino, nega que a substituição de 20 delegados tenha acontecido por influência do presidente da República, Jair Bolsonaro (PL-RJ). Até as pedras dos calçamentos das ruas e avenidas do Brasil sabem que o presidente e o seu filho Eduardo, deputado federal por São Paulo e ex-agente da PF, colocaram Maiurino no cargo para substituir os delegados e agentes que contrariam os interesses da família Bolsonaro. O assunto faz parte de um processo que está nas mãos do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Esse é o fato. Eu quero conversar com os meus colegas sobre um dos mais nefastos das dezenas de efeitos colaterais que resultarão do desmanche da Polícia Federal que vem sendo realizado pelo governo a passos acelerados. Trata-se da consolidação do Brasil como corredor de passagem da cocaína produzida na Colômbia, na Bolívia e no Peru para os mercados consumidores dos países europeus. Esse corredor foi organizado pelas duas maiores e mais importantes facções criminosas brasileiras instaladas no Paraguai: o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro.
O PCC e o CV montaram no território paraguaio entrepostos da cocaína fornecida pelos cartéis de produtores colombianos, bolivianos e peruanos. E usam a sua estrutura no Brasil para enviar, pelos portos marítimos e os aeroportos internacionais, a cocaína para a Europa, a Ásia e os Estados Unidos. Esse sistema está funcionando a todo vapor. Não por outra razão que as apreensões de cocaína no território nacional têm sido recordes, como por exemplo a que foi feita em Pelotas, a quarta maior cidade do Rio Grande do Sul e a maior do sul do Estado. No final da primeira quinzena de novembro foram apreendidas, em número redondos, três toneladas de cocaína embaladas para exportação. Sessenta quilômetros ao sul de Pelotas fica o movimento porto de Rio Grande, de onde partem embarcações para todos os cantos do mundo. Há vários relatos semelhantes ao de Pelotas disponíveis na internet. A consolidação do território brasileiro como passagem de drogas para várias partes do mundo é uma realidade. Tenho ouvido isso de especialistas, agentes calejados da PF e de outras organizações policiais da América do Sul, dos Estados Unidos e de Portugal. Processo semelhante já aconteceu no México e resultou no surgimento de cartéis varejistas de drogas. Eles compram a cocaína na Colômbia, Bolívia e Peru e a vendem no mercado consumidor dos Estados Unidos, um dos maiores do mundo. Graças a esses cartéis que o território mexicano é um dos mais violentos do mundo.
Antes de seguir conversando, vou dar uma explicação que considero relevante. Um dos focos da minha carreira de repórter é o crime organizado nas fronteiras. Essa situação que descrevi venho acompanhando nas últimas três décadas escrevendo reportagens, publicando livros e viajando pelas regiões fronteiriças do Brasil de dois em dois anos. Dito isso, vamos voltar à nossa conversa. A única pedra no sapato do PCC e do CV para consolidar o território nacional como um corredor de passagem da droga rumo aos mercados mundiais são os agentes da PF. Como a coisa funciona? Existe uma rede informal de troca de informações entre os agentes federais e os seus colegas dos serviços de inteligência das polícias civis e militares nos estados. Fazem parte dessa rede de informações policiais de países vizinhos. Essa carga que foi apreendida em Pelotas vinha sendo monitorada desde que saiu do seu país de origem. Geralmente tudo começa com uma informação vazada por um concorrente do produtor da droga. É assim que as coisas funcionam. Aprendi que essa rede de informações se baseia na confiança entre os agentes. Sempre que acontece uma troca de superintendente da PF em um estado a mudança se reflete em toda essa rede. Por quê? O novo ocupante do cargo tem o poder de substituir os delegados na sua área, que por sua vez podem mexer nos agentes da sua delegacia. É uma reação em cadeia. Se essa rede informal de informações entre os agentes se rompe, o caminho fica livre para as quadrilhas. E o que pode acontecer? O território brasileiro é muito grande. E o PCC e o CV não são as únicas organizações criminosas que existem. Há dezenas de outras, como os Bala na Cara, no Rio Grande do Sul, e a Família do Norte (FDN), no Amazonas. Essas organizações regionais hoje são aliadas do PCC e do CV. Mas se o envio de drogas para outros países se consolidar como um sistema seguro para operar, o lucro que irá gerar será enorme. Logo, as facções regionais vão se organizar e lutar contra o PCC e o CV por uma parte no negócio. Foi assim que aconteceu no México. É fato conhecido de todos os jornalistas, principalmente dos repórteres que fazem a cobertura de assuntos de segurança pública, que a credibilidade de uma organização policial facilita em muito a sua ação em campo. Foi longo e demorado o caminho percorrido pela PF para ter credibilidade junto às organizações policiais estrangeiras, Durante a ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985, a PF fazia parte do sistema de segurança usado pelo regime contra os seus inimigos políticos. Depois da redemocratização houve uma qualificação técnica dos agentes, acompanhada de valorização nos salários, que abriu o caminho para tornar a PF uma das mais respeitadas organizações policiais da América do Sul. A mensagem que Bolsonaro passa influenciando na nomeação de delegados é a de que a PF pode ser colocada a serviço dos interesses pessoais de quem ocupa a cadeira de presidente. Se ele pode, outros também podem. Claro, todas as grandes organizações policias nos países democráticos ao redor do mundo estão sujeitas a pressões vindas de quem ocupa o poder. É do jogo. O que está acontecendo com a PF é chinelagem – coisa de bagaceiro.