O procurador-geral da República, Augusto Aras, não é o primeiro a ocupar o cargo e retribuir a indicação ao presidente da República fazendo vistas grossas e ouvidos de mercador às lambanças do seu benfeitor. Durante o mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP), o então procurador-geral Geraldo Brindeiro foi reconduzido ao cargo em três oportunidades. No tempo que permaneceu à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR), de 1995 a 2003, ele recebeu 626 inquéritos criminais, dos quais engavetou 242 e arquivou outros 217. Os inquéritos envolviam 194 deputados, 33 senadores e 11 ministros do governo. O caso mais polêmico implicava parlamentares que votaram favoráveis à proposta de emenda à Constituição que introduziu a reeleição a presidente da República, em 1995. Na época havia uma polarização na disputa política entre o PSDB e o PT. Por conta dessa polarização, Brindeiro foi apelidado de engavetador-geral da República. O apelido sobreviveu ao tempo e até hoje é lembrado nas redações, principalmente pelos velhos repórteres. Por qual apelido Aras deverá ser lembrado? É sobre isso que vamos conversar.
O mandato de Aras na Procuradoria-Geral da República acaba em setembro. Ele já foi indicado para o segundo mandato pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). E depende da aprovação do Senado para prosseguir no cargo. Ainda não se tem um levantamento dos casos que Aras fez vista grossa ou ouvido de mercado para supostamente proteger a Bolsonaro. Mas tem gente de peso na Justiça de olho na atuação dele, como por exemplo os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). A ministra Rosa Weber disse que Aras “desincumbiu-se do seu papel constitucional” quando alegou que deveria esperar a conclusão da CPI da Covid para se posicionar sobre uma notícia-crime apresentada por parlamentares contra o presidente no caso “da propina de um dólar por vacina” – há matéria na internet. A ministra Cármen Lúcia foi dura e direta com Aras quando ele a deixou sem resposta sobre outra notícia-crime apresentada por parlamentares contra o presidente. Ele deu 24 horas para o procurador responder – matéria na internet. Na quarta-feira (18/08), os senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Fabiano Contarato (Rede-ES) protocolaram um notícia-crime contra Aras no STF, acusando-o de não fiscalizar os atos contra a democracia e o cumprimento da lei de enfrentamento à pandemia causada pela Covid-19.
Aqui é o seguinte. Estou chamando a atenção dos colegas repórteres, principalmente dos jovens que trabalham nas redações na cobertura do dia a dia, para o fato de que, a exemplo da época de Brindeiro, nos dias atuais a disputa política é radicalizada. Entre Bolsonaro e o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP). O que há de diferente? Uma pandemia causada pela Covid-19, que já matou 560 mil brasileiros, colocou a economia de joelhos e protagonizou cenas que jamais serão esquecidas, como a dos pacientes dos hospitais de Manaus (AM) e do interior do Pará morrendo asfixiados por falta de oxigênio hospitalar. A lambança que se tornou o Ministério da Saúde se deve ao fato do presidente Bolsonaro ter transformado o seu negacionismo em relação ao poder de contágio e letalidade da Covid em política de governo. Pelo menos 300 mil brasileiros poderiam ter sido salvos não fosse o negacionismo do presidente, que está sendo investigado pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do Senado, a CPI da Covid. As ações contra Bolsonaro que supostamente Aras tem feito vistas grossas e ouvido de mercador são aquelas referentes à política de combate à pandemia e à tentativa de reinstalar uma ditadura militar no Brasil. Aqui a diferença entre Aras e Brindeiro, o engavetador-geral da República. Os inquéritos que Brindeiro engavetou morreram ali. Os casos que Aras está “sentando em cima” vão seguir em frente, apesar dos esforços dele de pará-los, porque são do interesse dos tribunais internacionais, por envolver crimes contra a humanidade. Lembro que no final da Segunda Guerra Mundial os Aliados montaram o Julgamento de Nuremberg, um tribunal onde julgaram os líderes nazistas pelos crimes cometidos contra a humanidade durante o conflito. E também recolheram informações para entender como Adolf Hitler e seus seguidores conseguiram convencer os alemães a fazer parte da máquina de matar dos nazistas.
Portanto, quando os casos das mortes dos 560 mil brasileiros e as tentativas do governo de reinstalar a ditadura militar no Brasil forem analisados pelos tribunais internacionais, Aras não será visto como o engavetador-geral da República. Mas como cúmplice de um governo golpista e genocida. É assim que o governo Bolsonaro é visto na comunidade internacional, incluindo o governo dos Estados Unidos. Lembro os meus colegas que a história corrói a gordura que se acumula ao redor dos fatos e consegue expor a realidade tal qual ela é. Além do interesse dos tribunais internacionais no que aconteceu no Brasil, os jornalistas, historiadores e pesquisadores vão vasculhar a CPI da Covid para entender o que aconteceu aqui. O procurador Aras, como tantos outros ao redor de Bolsonaro, ainda não entendeu o tamanho da encrenca em que está metido. Aras pode aprender da pior maneira a diferença entre engavetador-geral da União e cúmplice. O que está acontecendo no Brasil hoje é grande demais para ser esquecido. E os responsáveis pela tragédia serão responsabilizados perante os tribunais. Não tenho dúvidas sobre isso, colegas.