Não vou entrar no atoleiro jurídico para discutir o assunto. Vou dizer como nós repórteres temos lidado com ele até agora. É o seguinte: uma pessoa se envolve em um crime que tem a sua investigação policial e o processo penal acompanhados pela imprensa. É condenada, cumpre pena e volta a ter uma vida normal na sociedade. Toda vez que o crime faz aniversário, o jornal vai lá e conta a história novamente. Mesmo após cansar de contar a história, todo o caso permanece nos arquivos do jornal disponíveis na internet. Portanto, basta clicar um botão para ter todos os fatos na tela do computador. Esse tipo de procedimento não é exclusividade da imprensa brasileira, ele existe nas redações pelos quatro cantos do mundo. Alegando que a lembrança do crime feita pela imprensa é como se fosse mais uma condenação. E que as informações do caso disponíveis na internet prejudicam o retorno a uma vida normal, ex-apenados estão pedindo na Justiça o direito ao esquecimento, com a despublicação das matérias – o que significa a retirada das informações da internet. Em linhas gerais é esse o assunto.
A discussão nos tribunais começou na Alemanha, tem algumas situações rolando nos Estados Unidos. E aqui há casos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), um deles relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva – Recurso Especial nº 1.736.803 – RJ (2017/002627 – 9). A cultura de relembrar os crimes sempre foi pauta nas redações. Eu trabalhei em várias matérias desse tipo. A mais ruidosa foi em 2008. Na época fiz parte da força-tarefa que recontou a história do assassinato do então deputado estadual gaúcho José Antônio Daudt. Em 1988, Daudt foi morto com tiro e o acusado pelo crime foi seu colega deputado e médico Antônio Dexheimer. Julgado em 1990 pelo Tribunal de Justiça (TJ) do Rio Grande do Sul, Dexheimer foi inocentado por falta de provas. Eu o entrevistei em duas ocasiões, a primeira poucas horas antes dele ser considerado o principal do suspeito do caso. E, em 2008, dois dias antes do crime prescrever. No tempo em que o jornal era publicado apenas na edição de papel, não lembro de ter ouvido ou lido qualquer coisa sobre o direito ao esquecimento. Há dois motivos pelos quais não se falava nesse assunto: o primeiro é que impossível retirar uma matéria de um jornal que já tenha sido impresso e que já circulou. Segundo, porque as informações contidas nas matérias acabavam sendo esquecidas e só eram encontradas nos chamados “encalhes”, depósitos que os jornais mantinham para guardar os exemplares não vendidos, e em documentos nos arquivos públicos. Elas não circulavam.
A internet instalou-se no Brasil em 1988, o mesmo ano da morte de Daudt. Mas só se popularizou por volta de 2010. A tecnologia da internet faz uma notícia dar a volta ao mundo em segundos. As pessoas têm acesso a informações apertando um botão. Conversei com profissionais de Recursos Humanos (RH), pessoas especializadas na contratação de trabalhadores para as empresas. Uma gerente experiente na área contou que, antes, para se conseguir dados sobre um candidato a emprego, “era um parto”, nas palavras dela. Acrescentou: “Hoje, ter acesso às informações relevantes sobre o candidato é fácil, barato e confiável”. Aqui é o seguinte: um dos motivos da tese do direito ao esquecimento é justamente a questão do mercado de trabalho. Se um jovem se meter em confusão que acabe nas páginas dos jornais (papel, site ou qualquer outra plataforma), a informação estará lá disponível na internet e pode provocar uma saia justa para ele na hora que entrar no mercado de trabalho. Como as redações têm tratado a questão? Antes de responder à pergunta, eu quero lembrar duas coisas: a primeira é temos a obrigação de publicar tudo que consideramos notícia. Segunda, que a concorrência entre nós repórteres e os meios de comunicação valorizam quem publica antes, o chamado furo jornalístico.
Agora respondendo à pergunta. A concorrência nos deixa pouco ou nenhum tempo para verificar as informações. Então supervalorizamos as palavras das autoridades. Daí nasceram os grandes erros do jornalismo. Um deles foi o caso da Escola de Base, em São Paulo. Em 1994, os repórteres acreditaram nas declarações de um delegado e acusaram professores, motorista e proprietários da instituição de abusarem sexualmente de crianças. A escola e as pessoas envolvidas foram destruídas. Entrou para a história como o maior erro jornalístico da imprensa brasileira. Jornais foram condenados a pagar alguns milhões de reais de reparação. Outro caso ruidoso e atual: os vazamentos da Operação Lava Jato. Como foi demonstrado pelo site The Intercept Brasil, a força-tarefa usou o vazamento de informações como um meio de manobrar a imprensa. Relatórios de delegados, sentenças de primeira instância e depoimentos de delatores foram transformados em verdades absolutas por nós. Um dia uma boa parte do que foi publicado vai explodir na nossa cara em forma de ações na Justiça, pedindo indenizações milionárias e o direito ao esquecimento.
Lembro o seguinte. Sempre apontaram o dedo na nossa direção nos acusando de dar manchete a fatos descobertos pela investigação policial em andamento. E que, portanto, não são definitivos. No final, quando o investigado é inocentado pela Justiça, nós publicamos uma notinha em um canto de página. Essa prática vem sendo corrigida através da publicação da atualização do caso. Uma nova matéria explicando o que aconteceu. Esse procedimento foi trazido para as redações pelos advogados das empresas jornalísticas. Até a metade da década de 90 a presença de advogados nas redações era escassa. Por conta de uma enxurrada de reclamações na Justiça contra publicações nos jornais, advogados foram contratados para conversar com os repórteres e editores sobre as implicações jurídicas das reportagens. Nos Estados Unidos essa prática já existe há quase um século. Agora é o seguinte. Em 40 e poucos anos envolvido com reportagem aprendi que a nossa obrigação de repórter é buscar até a exaustão, nos mais profundos e complicados esconderijos, a verdade. Se mesmo assim se cometer um erro, reconhecê-lo e corrigi-lo faz parte do bom jornalismo. Varrer para baixo do tapete é cometer um dos mais odiosos crimes.