Na lei, quem assume a presidência da República no primeiro dia do próximo ano é o capitão da reserva do Exército Jair Bolsonaro (PSL – RJ). E não as Forças Armadas. Mas, no imaginário popular, são as Forças Armadas que assumem o governo, por serem um referencial de reputação ilibada. O próprio presidente eleito reforçou essa ideia com a presença de generais da reserva em postos-chaves da nova administração. Nesse cenário, foi aceso o alerta vermelho pelo caso do R$ 1,2 milhão envolvendo Flávio Bolsonaro (senador eleito pelo Rio de Janeiro e atual deputado estadual), filho do futuro presidente. Fabrício Queiroz, assessor de Flávio, recebeu esse dinheiro de oito servidores do gabinete do deputado e repassou parte dele para gente da família Bolsonaro.
A movimentação financeira foi detectada pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). A movimentação não é crime se a origem dinheiro não for ilegal. Uma investigação deverá responder a essa pergunta. A principal suspeita é de que seja de um tipo de prática muito comum entre os parlamentares brasileiros. Eles exigem a devolução de parte dos salários que são pagos aos funcionários dos gabinetes. A pressão dos partidos de oposição e da imprensa vai se encarregar de garantir que o caso seja resolvido. Seja lá qual for o resultado desse caso, o fato é que, no imaginário popular, envolve um governo de ex-oficiais das Forças Armadas. Aqui, eu quero lembrar aos meus colegas repórteres uma coisa. Durante o governo militar (1964 a 1985), os generais que ocuparam o poder travaram uma guerra ideológica contra os seus opositores. Houve boatos de desvio de dinheiro. Mas jamais foram esclarecidos, porque existia uma ferrenha censura à imprensa. Hoje temos a liberdade de imprensa, as instituições funcionando e uma boa parte da população organizada para defender os seus interesses.
Há mais um fator que aumenta o poder de esse episódio se transformar em um baita problema para as Forças Armadas. Bolsonaro se elegeu carregando a bandeira de ser o “único honesto” entre os que disputavam a presidência da República. Os eleitores no Brasil, isso tem sido comprovado a cada eleição, não recebem bem a notícia de que o candidato que levou o seu voto, dizendo que era diferente, estava mentido. Como foi o caso do presidente da República Fernando Collor de Mello, que se elegeu empunhando a bandeira de caçador de marajás – assumiu em 1990 e renunciou dois anos depois para escapar do impeachment. Tem mais um fato: até agora, o grupo político do presidente eleito se vangloriava ter ganhando a eleição usando apenas as redes sociais e que a mídia tradicional já era. Na semana passada, o deputado federal Onyx Lorenzoni (DEM – RS), que vai ser um dos superministros do presidente eleito, perdeu a calma com um repórter, ao ser perguntando sobre o R$ 1,2 milhão. A confusão não passou despercebida pelo núcleo militar do grupo do Bolsonaro.
Antes de seguir contando a história, eu gostaria de refletir sobre um fato com os meus colegas repórteres. As Forças Armadas que deram o golpe em 1964 não existem mais. Hoje o Exército, a Marinha e a Força Aérea Brasileira (FAB) têm em suas fileiras uma geração de novos oficiais e graduados altamente qualificados pelas escolas das instituições e que, ao fim de suas carreiras militares, são mão de obra disputadíssima no mercado trabalho. Os militares de 1964 saiam das Forças Armadas, vestiam o pijama e eram esquecidos no outro dia. Os de hoje iniciam uma nova carreira no momento em que deixam a farda. A maioria dos generais da reserva que fazem parte do grupo do Bolsonaro é sabedora dessa nova realidade na caserna. E que os jovens oficiais não deram um cheque em branco para eles. Esse é o quadro. Portanto, temos que ficar atentos às informações que estão circulando nas entrelinhas dos conteúdos dos noticiários. A realidade brasileira é uma das mais cruéis da história para o trabalhador. São 14 milhões de desempregados e os serviços de saúde pública em plena decadência devido à sobrecarga de trabalho e à carência de recursos. Dentro de uma realidade dessas, qualquer faísca pode detonar uma grande confusão. O capital político do grupo de Bolsonaro não é elástico. A coisa é simples assim.
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