“Sobrava tempo para o Bolsonaro administrar o país?” A pergunta foi-me feita por uma amiga nos dias seguintes a quinta-feira, 8 de fevereiro, quando a Polícia Federal (PF) iniciou a Operação Tempus Veritatis, a hora da verdade em latim. As descobertas dos agentes federais inundaram as manchetes dos jornais e os noticiários de rádio e TV com detalhes de como o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) e a cúpula do seu governo conspiraram para dar um golpe de estado. A conspiração resultou na ação de bolsonaristas radicalizados que no dia 8 de janeiro de 2023 quebraram tudo que encontraram pela frente nos prédios do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi divulgado um vídeo de 90 minutos de uma reunião entre o ex-presidente e seus ministros, realizada em 5 de julho de 2022, que escancarou toda a conspiração do golpe – há um enorme volume de matérias sobre a operação disponíveis na internet.
Vamos conversar sobre a pergunta com a qual abri a nossa conversa. A ideia que ficou do governo Bolsonaro (2019 a 2022) é de que o ex-presidente passou todo o seu mandato pulando de uma confusão para outra, tamanho eram as polêmicas que provocava cada vez que abria a boca. Lembro-me que no primeiro ano de governo ele focou as suas agressões aos familiares dos presos políticos da ditadura militar (1964 a 1985). O símbolo dessa época foi a ofensa que fez ao então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz (2019 a 2022). Em 1974, o pai de Santa Cruz, Fernando Augusto, era militante contra a ditadura. No Rio de Janeiro, ele foi preso, torturado, morto e os seus restos nunca foram encontrados. Bolsonaro disse que se um dia Santa Cruz quisesse saber o que tinha acontecido com o pai, ele contaria. Mas duvidava que tivesse interesse em “saber a verdade” – há muitas matérias sobre o assunto disponíveis na internet. O então presidente da República não perdia uma oportunidade para elogiar o maior torturador da ditadura, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015). Em 30 de julho de 2019, escrevi o post Bolsonaro continua enfiando o dedo na ferida de 64. Por quê? Em parte, essa pergunta vem sendo respondida pelas investigações da Operação Tempus Veritatis. Ao enaltecer os torturadores de 1964, Bolsonaro aprofundou o seu prestígio entre os militares saudosistas do golpe. E, com isso, ressuscitou o orgulho pelo trabalho que fizeram, que foi prender, torturar e matar pessoas, a maioria estudantes. Bolsonaro usou essa história como um cavalo de Troia para penetrar nas Forças Armadas e dividi-las entre legalistas e conspiradores. O mesmo sistema foi usado para se infiltrar nas polícias civis (estaduais e federal) e militares. Os saudosistas do golpe sobreviveram à passagem do poder dos militares para os civis, em 1985, porque houve um grande acordo entre as partes que resultou na Lei da Anistia, que evitou a punição dos torturadores. Nos dias atuais, as coisas mudaram. Os conspiradores estão indo para a cadeia – há matérias na internet.
Em 2020 e parte de 2021, o então presidente Bolsonaro encontrou o que julgou ser o inimigo ideal para torná-lo uma personagem da extrema direita no mundo: a Covid-19. Transformou em política de governo o seu negacionismo em relação ao poder de contágio e letalidade do vírus. Descumpriu as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto aos cuidados necessários para evitar o agravamento do contágio em um momento que não existiam remédios nem vacina para lidar com a doença. A população brasileira viveu o medo de ser a próxima vítima do vírus. Toda essa história é contada nas 1,3 mil páginas do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid), que colocou as digitais do governo Bolsonaro na morte de 700 mil brasileiros pelo vírus. Há livros, trabalhos de pesquisa e muitos artigos descrevendo esse período da história brasileira. Lembro-me da mania de Bolsonaro de simplificar as coisas. Por exemplo. Ele não se envolvia em nenhum assunto econômico. Dizia que era tudo com o seu ministro da Economia, Paulo Guedes, a quem chamava de Posto Ipiranga, referindo-se a uma publicidade que dizia que tudo podia ser resolvido nos postos de serviço de determinada marca. Guedes entrou para a história como o Posto Ipiranga de Bolsonaro. Atualmente, quando as manchetes continuam sendo ocupadas pelos escândalos do ex-presidente, a ideia que se tem é que Bolsonaro não fazia outra coisa no seu governo a não ser armar confusão. Esta ideia não existe porque a imprensa pegou no pé do ex-presidente. Ela foi construída tijolo por tijolo pelos marqueteiros de Bolsonaro. Não importam as obras deixadas pelo governo, mas o número de confusões que mantiveram nas manchetes o nome do governante.
Essa é a nova realidade dos governos nos dias atuais. Escândalos, conspirações e outros malfeitos são as obras deixadas pela administração. São elas que mantêm o nome do governante nos jornais. E se transformam em votos nas eleições seguintes. No caso de Bolsonaro, ele mantém o seu prestígio na extrema direita, que é usado para eleger quem o apoia, já que ele próprio foi declarado inelegível pelos próximos oito anos pelo Tribunal Superior Eleitoral TSE). Se essa estratégia dará certo ou não, ninguém sabe. As eleições municipais serão uma oportunidade de se conhecer o grau da sua eficiência.