Um país com mais de 30 milhões de famintos, com mais armas nas mãos de civis do que nos arsenais das organizações policiais e com considerável grau de intolerância religiosa. Esse é o cenário que espera o próximo presidente da República, incluindo Jair Bolsonaro, que concorre à reeleição. É muito semelhante ao Brasil dos anos 80, quando começou o processo de redemocratização do país com o final do regime militar (1964 a 1985). Lembrei-me desses fatos na manhã de quarta-feira (14/09), quando fui surpreendido por um comunicado nas redes socais da Editora Vozes anunciado a morte do teólogo Leonardo Boff, 83 anos. Minutos depois, o comunicado foi desmentido pela Vozes e pelo próprio Boff, que escreveu no Twitter: “Corre por aí a notícia que teria falecido. Não sei qual é a intenção desta fake. Mas comunico que estou vivo. Vivo para lutar pela vitória da vida já no primeiro turno. Não percamos tempo: lutemos pela vitória do Lula já no primeiro turno”. Está vivo mesmo, pensei. Esse é o Boff que conheci e convivi algumas vezes nos anos 80. Na época era o Frei Boff, um franciscano que vivia se atritando com o Vaticano devido a suas posições em favor das lutas populares. Foi um dos construtores da Teologia da Libertação, que pode ser definida como a opção pelos pobres da Igreja Católica da América do Sul.
O desmentido da notícia foi publicado pela Vozes porque Boff foi dirigente da editora, fundada há mais de 100 anos pelos franciscanos. Boff tem vários livros publicados, entre eles Jesus Cristo Libertador. Não lembro o mês, muito menos o dia, mas tenho certeza que foi no final da década de 80 que a Vozes realizou em Porto Alegre um encontro dos seus autores. Eu sou um deles porque publiquei dois livros pela editora: A Saga do João Sem Terra e Brasiguaios: Homens sem Pátria. Foi um dia todo de conversa e análise da conjuntura política do Brasil da época. Na hora do almoço, se bem lembro um cardápio franciscano, sentei ao lado de Boff e conversamos por mais de duas horas bebericando o “vinho do padre”. Assunto não faltou para a conversa. A Teologia da Libertação era um dos esteios da luta pela reforma agrária. Na época, eu fazia a cobertura dos conflitos agrários no Brasil e países vizinhos, como o Paraguai. Por conta disso estive em todas as grandes ocupações de fazendas nos quatro cantos do país promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outras organizações de campesinos. Lembro que nos muitos acampamentos de sem-terra que existiam na beira das estradas conviviam pessoas de várias crenças religiosas, que tinham em comum serem miseráveis e estarem lutando pelo futuro dos filhos. Lembro-me que quando os acampamentos eram atacados por pistoleiros de aluguel ou policiais militares as mães se deitavam no chão para proteger os seus filhos. Ninguém me contou. Eu estava lá e fiz matéria. Também assisti várias vezes, na hora das orações, rezarem juntos freis, pastores (neopentecostais e tradicionais) e seguidores de outras crenças. A única rivalidade que existia ali era a futebolística.
A luta pela terra continua no Brasil. Mas já existem mais de 1 milhão de famílias de agricultores instaladas em 9 mil assentamentos. A maioria delas produzindo e integradas aos mercados. Como mostram os números, a reforma agrária andou nesses últimos 37 anos. Bem como a solução de outros graves problemas nacionais, vou citar dois: a fome e questão das armas. Na década de 80, o número de pessoas subnutridas pelos sertões brasileiros era um espetáculo macabro. Eu vi e fiz matéria. O desenvolvimento econômico do país que resultou na criação de empregos aliado com programas sociais governamentais diminui de maneira drástica os famintos – há muito material sobre o assunto disponível na internet. A questão das armas foi disciplinada pelo Estatuto do Desarmamento, de 2003. O que vou escrever a seguir não é opinião, são fatos que publicamos. Nos primeiros dias após a posse de Bolsonaro, em janeiro de 2018, o seu ministro da Economia, Paulo Guedes, apelido pelo presidente de Posto Ipiranga, disse durante uma conversa que o valor ideal do dólar americano era R$ 5. Citou que, em decorrência do dólar baixo (na época em torno de R$ 3), as empregadas domésticas estavam indo passear na Disneylândia. Uma situação que considerava um absurdo. A arrogância de Guedes, somada com a prepotência do presidente da República, conduziram a administração do país ao caos durante dois períodos complicados na história do mundo: a pandemia causada pela Covid e a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, dois produtores de matérias-primas essenciais para a agricultura. Resultado: foi um retrocesso no desenvolvimento do país para a década de 80. Há mais de 30 milhões de pessoas famintas. A questão das armas é outra história. Bolsonaro conspirou contra o Estatuto do Desarmamento baixando leis e portarias que flexibilizaram o acesso às armas e ao mesmo tempo detonou os órgãos que faziam a fiscalização. Hoje o arsenal dos civis é maior que o das policias civis e militares.
O tempo que o novo presidente terá para encaminhar a solução desses problemas é curto, essa é avaliação que especialistas em crise fazem. A situação pode se complicar caso haja uma lambança durante as eleições, como vem prometendo o presidente da República – há matérias na internet. Há mais um problema. A atual administração desestruturou vários setores do serviço público federal, principalmente os ligados à fiscalização, colocando nos postos de coordenação mais de 6 mil militares (ativa, reserva e reformados) que não entendem nada do assunto. Ouvi de uma colega, um repórter velho como eu, que vive em Brasília (DF), uma avaliação sobre o governo que julgo interessante. Disse ele: “Tem confusão para qualquer lado que se olhe no serviço público federal”. Respondi que venho conversando com funcionários públicos federais de carreira e que o rolo é maior do que nós jornalistas imaginamos. Pautas é que não vão faltar.