Há uma regra simples e básica para se entender os acontecimentos. Não existe espaço vazio na disputa política, comercial ou seja ela qual for. Por conta dessa regra, a região conhecida como Nortão do Mato Grosso, berço de importante segmento do agronegócio, as grandes lavouras de soja, ganhou vizinhos perigosos: 42 facções criminosas, sendo 13 nacionais, 17 estrangeiras e 12 locais. Essas organizações foram atraídas para a região pelo sucateamento feito pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) na fiscalização federal dos órgãos de meio ambiente, que facilitou a entrada delas nos negócios ilegais de garimpo nas terras indígenas, derrubada de madeira, pesca e outros crimes ambientais. Até então, as facções só operavam na região com o tráfico de drogas que chegam de países vizinhos, como a Colômbia, e são transportadas pelos rios até os portos e aeroportos das cidades brasileiras da orla marítima e de lá seguem para os mercados consumidores dos países europeus e os Estados Unidos. Dois crimes que se tornaram notícia mundial foram o cartão de apresentação da presença das facções na região. O primeiro foi a tocaia e morte do jornalista britânico Dom Phillips, 57 anos, e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, 41 anos, em junho de 2022 – toda a história está internet. O segundo ocorreu em abril de 2023. Descobriu-se que estavam envolvidas nos garimpos na reserva yanomami, uma vasta área na fronteira de Roraima com a Venezuela. A invasão dos garimpeiros espalhou a fome entre os indígenas, que foram reduzidos a pele e ossos.
Toda essa história, incluindo um mapa com os nomes das facções e sua localização no território, é contada no Relatório Mundial Sobre Drogas 2023, do Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crimes (UNODC). É a primeira vez que o relatório traz um capítulo especial sobre o envolvimento das facções em crimes ambientais – há matérias em todos os grandes jornais do Brasil. Vamos conversar sobre o futuro dessa situação. O Nortão do Mato Grosso era, nos anos 70, uma das chamadas fronteiras agrícolas brasileiras, regiões de baixa densidade populacional. Para lá foram levados, pelo governo federal e por empresas de colonização particulares, milhares de agricultores gaúchos e seus descendentes. Conheço bem a região e todo o processo de povoamento, que contei em três livros que escrevi sobre o assunto: Brasil de Bombachas (edições de 1996, 2011 e 2019). Nos últimos 40 anos, as lavouras de soja, algodão e milho e a criação de gado transformou acampamentos de barracas de agricultores em cidades ricas, como Sinop e outras. Não vejo como o mercado de varejo de drogas dessas cidades possa vir a interessar os chefes das grandes facções, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, por se tratar de uma operação pequena, que já é feita pelas quadrilhas locais. O que acontece em ocasiões semelhantes a essa é os quadrilheiros locais, dizendo-se integrantes do PCC ou do CV, começarem a tirotear pelas ruas.
Nos anos 70 havia grandes garimpos nessa região, como o Garimpo do Peixoto, que conheci quando era apenas uma rua lamacenta cheia de casas feitas de madeira, onde morava gente vinda de todos os cantos da América do Sul em busca de ouro. Hoje o ouro é a soja, o milho e o algodão. É uma região conservadora. No segundo turno das eleições de 2022, Bolsonaro fez 76,95% dos votos e o atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 23,05%. Por uma das ironias da história, como dizia um velho repórter que conheci em Londrina (PR), foi a política ambiental do ex-presidente que abriu caminho para a consolidação das facções criminosas na região. Lembro que Bolsonaro é apoiado pela bancada ruralista da Câmara dos Deputados. Aqui é o seguinte. O agronegócio não tem um comando geral. Muitos dizem falar pelo setor, mas na verdade apenas representam meia dúzia de produtores. O setor envolve desde grandes empresas produtoras de grãos e carnes (bovina, suína e frango) a grandes, médios e pequenos proprietários de terras. A maioria dos pequenos produz em parceria com as agroindústrias, que são as empresas que mais geram empregos no interior do Brasil. A imprensa ajuda a agravar essa situação porque trata o agronegócio como se tudo fosse a mesma coisa. Não é. O fato é o seguinte: a presença das facções na região está consolidada e elas vão investir dinheiro em quem proteger os seus negócios ilegais, em especial o garimpo. Andei conversando sobre o assunto com cientistas sociais que estudam a política no Nortão do Mato Grosso. Contaram que, nas eleições de 2022, os financiadores locais, aliados com as facções, investiram em candidatos que defendiam os garimpos ilegais e as madeireiras clandestinas. Acreditam que essa aliança entre os financiadores locais do garimpo com as facções deve colocar dinheiro pesado nas eleições municipais.
Para arrematar a nossa conversa. Existe, por parte das facções, a firme decisão de transformar o Brasil em um corredor de exportação de cocaína (da Colômbia, Peru e Bolívia) para os países da Europa e os Estados Unidos. Tal situação já aconteceu no México, o que resultou na formação de cartéis de distribuidores de cocaína colombiana. Se existir alguma coisa que ajude os dirigentes das facções na construção desse corredor da droga eles vão usar. Também havia a firme decisão da Polícia Federal (PF) de impedir que o Brasil se torne um corredor de cocaína para os países europeus e Estados Unidos. Todos os dias aparecem nos noticiários apreensões de drogas em navios. O que vai acontecer no Nortão do Mato Grosso vamos saber com o tempo. Uma coisa é certa. As facções consolidaram a sua presença nos garimpos.