Na década de 80, eu passava mais tempo fazendo reportagens investigativas na fronteira do Brasil com o Paraguai do que na redação do jornal, em Porto Alegre (RS). Eram dias cansativos, envolvidos com longas e minuciosas apurações, ou “pedreiras”, como se dizia no linguajar dos repórteres na época. Viajava com carro sem o logotipo do jornal, acompanhado de um motorista e um repórter fotográfico. Circulava na fronteira por uma área de 600 quilômetros entre as cidades de Foz do Iguaçu (PR) e Ponta Porã (MS). A volta para Porto Alegre era uma viagem de dois dias e o pernoite frequentemente era em Frederico Westphalen, uma cidade de porte médio no norte do Rio Grande do Sul, a uns 450 quilômetros da Capital. Na entrada da cidade há uma subida e, no final dela, havia um boteco que tinha um caíque no telhado que se chamava Viajando na Maionese. Parava ali para tomar uma cerveja gelada e relaxar. Era uma espécie de ritual. Lembrei-me desse fato por conta da retirada, pelo ministro Alexandre de Moraes, 55 anos, do Supremo Tribunal Federal (STF), do sigilo do inquérito da Polícia Federal (PF) que investigou a tentativa de golpe de estado que envolveu o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), 69 anos, e outras 36 pessoas. Na terça-feira (26), Moraes enviou o inquérito para a Procuradoria-Geral da República (PGR), que deverá decidir o destino dos 37 indiciados, entre eles 27 militares de várias patentes, inclusive generais.
A PF classificou os golpistas como uma organização criminosa. Essa intenção de retirar do ato o cunho político é o que podemos ver no conteúdo das 884 páginas do inquérito que estão sendo esmiuçadas pela imprensa. Sobre o assunto há uma enxurrada de informações disponíveis nos noticiários e nas redes sociais. Vamos conversar sobre dois detalhes da tentativa de golpe que atiçaram a minha memória e me fizeram lembrar do boteco Viajando na Maionese, em Frederico Westphalen. Nos anos 80, circulava com muita intensidade entre os jornalistas o dito popular “viajando na maionese”, usado no sentido de “estar delirando”. Vamos contextualizar a conversa. O golpe tinha como objetivo matar o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 79 anos, e o vice, Geraldo Alckmin (PSB), 72 anos, que haviam derrotado Bolsonaro na sua tentativa de reeleição, numa chapa que tinha como vice o general da reserva Braga Netto, 67 anos. Feita a contextualização, vamos ao primeiro detalhe: de onde os golpistas tiraram a certeza de que as Forças Amadas iam apoiar o golpe? O que os conteúdos do inquérito estão nos revelando é que os então comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, 67 anos, e da Força Aérea Brasileira (FAB), tenente-brigadeiro Carlos Baptista Junior, 64, se recusaram a aderir ao golpe. E que concordou com o golpe o comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, 64 anos. Ainda não sabemos, mas deverá ser esclarecido no andamento do caso se o almirante falou só por ele ou pela corporação.
Durante a campanha eleitoral de 2022 foi amplamente noticiado que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden (democrata), 81 anos, enviou emissários para conversar com as Forças Armadas brasileiras sobre a posição do seu governo em caso de acontecer um golpe de estado. Os americanos disseram, com todas as letras, que não apoiariam. O que isso significa? Muitas coisas, entre elas o corte de convênios entre as Forças Armadas dos Estados Unidos e do Brasil. Os golpistas esqueceram da visita dos americanos? O segundo detalhe foi revelado pelas conversas entre os golpistas interceptadas pelas escutas telefônicas e as mensagens de texto. Os golpistas esperavam um enorme contingente de pessoas acampadas na frente dos quartéis. Não existe um número oficial, mas a estimativa é de que, em todo o Brasil, o número de acampados foi de cerca de 5 mil pessoas. Vamos admitir que tenha sido o dobro. Mesmo assim, é um grão de areia em uma praia. A história dos acampados tornou-se relevante graças ao grupo que, em 8 de janeiro de 2023, invadiu e destruiu tudo que encontrou pela frente no Palácio do Planalto, no Congresso e no STF, na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). Eles se esqueceram que o então presidente Bolsonaro enfrentou um enorme desgaste na sua popularidade por ter tornando política de governo o seu negacionismo em relação ao poder de contágio e letalidade da Covid-19 durante a pandemia (2020 e 2021). Bolsonaro é um político popular. No segundo turno das eleições presidenciais de 2022, recebeu 49,17% dos votos válidos, em torno de 57 milhões de eleitores. Segundo estudiosos, apenas 30% desses seus eleitores são “raiz”, aqueles que topam qualquer parada pelo candidato. Também é assim com Lula e qualquer outro líder. Os golpistas não sabiam destas estatísticas?
Como se dizia antigamente nas redações dos jornais, eles viajaram na maionese e acabaram acreditando nas suas próprias mentiras. Como lembrei no início da nossa conversa, eu conheço profundamente as fronteiras do Brasil com os países vizinhos, incluindo o Acre e os outros estados da região amazônica. A possibilidade de ocorrer uma agressão ao território nacional é muito remota. Mas já está acontecendo com as organizações criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, que, associados a quadrilhas locais, estão trazendo drogas, armas, munições e explosivos para o território brasileiro usando os rios da Floresta Amazônica. É necessário ter as Forças Armadas perfiladas ao lado da PF para patrulhar a região. Ou seja, há trabalho a fazer. Agora, por que mais de uma dezena de generais se associaram a Bolsonaro e investiram em espalhar mentiras e acabaram acreditando nelas, é um caso a ser estudado. A única pista que temos é que se associaram para engrossar os seus ganhos.