Por ter sido um assunto mal resolvido, de tempos em tempos a Lei da Anistia, que completa 40 anos em agosto de 2019, volta ao debate nacional. Aconteceu durante a primeira eleição (2010) da ex-presidente da República Dilma Rousseff (PT – RS). A disputa entre Dilma e o senador José Serra (PSDB – SP) foi pesada, e o passado da ex-presidente foi usado contra ela. Durante o Regime Militar (1964 a 1985), ela fazia parte dos quadros da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR – Palmares), uma organização de esquerda que participou da luta armada contra a ditadura. Dilma foi presa e torturada em 1970 – há um vasto material disponível na internet. No segundo turno das eleições presidenciais, a Anistia vai voltar a ser debatida. Porque a disputa é entre Fernando Haddad (PT – SP) e Jair Bolsonaro (PSL – RJ), capitão da reserva do Exército que fez a sua carreira política defendendo os valores dos militares e dos civis que deram o golpe em 1964 e derrubaram o então presidente da República eleito João Goulart, o Jango do antigo PTB gaúcho. Na sessão da Câmara Federal, em 2016, ele justificou o seu voto pelo impeachment da Dilma homenageando o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (falecido em 2015), o homem que organizou a tortura nos porões da ditadura.
Esse é o cenário. A Anistia, que foi assinada pelo então presidente da República general João Baptista Figueiredo (falecido em 1999) nunca desceu pela garganta da direita e, muito menos, da esquerda brasileira. Se por um lado ela permitiu, entre outras coisas, a volta dos exilados ao Brasil, como o ex-governador gaúcho Leonel Brizola, a lei deixou vários pontos obscuros como no caso dos agentes do Estado que se envolveram em torturas. Em 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) com ação questionando a questão dos funcionários do Estado envolvidos em tortura. O STF decidiu contra a ação. Um dos motivos dessa decisão foi de que a lei é uma espécie de pacto que possibilitou a volta do país à normalidade democrática. Logo que Bolsonaro se consolidou como candidato a presidente da República, eu ouvi vários advogados, pensadores (esquerda e direita) e velhos colegas dos tempos das redações das máquinas de escrever sobre a Lei da Anistia. Traçando uma linha da média das opiniões que ouvi, o problema da candidatura de Bolsonaro não é pelo fato de ele ser um militar da reserva ou defender os valores políticos do liberalismo econômico. Mas de fazer apologia aos torturadores, tipo o coronel Ustra e aos golpistas que derrubaram Jango.
A disputa de Bolsonaro e Haddad é acirrada, é da cintura para baixo é canela, como descreve o jargão dos repórteres esportivos em um jogo disputado. As coisas não resolvidas pela Anistia são munição para os dois lados. Mas o que os eleitores ganham com uma discussão dessas? Os velhos, como eu, a lembrança de um assunto que não foi resolvido e que ronda o nosso cotidiano. E, para as novas gerações, um alerta que o preço pago para os militares passarem o poder para os civis, em 1985, foi mal contado. Eu tenho 69 anos, 40 como repórter, sendo que 35 deles trabalhei em redação de jornal. Os jornalistas americanos sabem muito mais do que nós sobre as entranhas da ditadura militar brasileira. E das negociações para a volta dos civis ao poder. Sabem mais porque têm acesso a documentos valiosos arquivados nos Estados Unidos. O governo americano se envolveu na derrubada de Jango. As negociações para a Anistia envolveram todo o país em uma grande discussão, eu lembro. E várias entidades, como o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) , o Movimento Feminino pela Anistia e o Comitê Brasileiro pela Anistia, foram atuantes na época. Essa história precisa ser reescrita para explicar as novas gerações o que aconteceu. Bolsonaro tem o direito de dizer a bobagem que quiser. Mas apologia a torturador é crime.