Confesso que fiquei surpreso com a decisão do prefeito reeleito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), 66 anos, de tocar em frente a proposta de conceder à iniciativa privada os serviços prestados pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae). Esta pauta é inapropriada para o atual momento por dois motivos: primeiro, porque o assunto divide os servidores da autarquia e a população de Porto Alegre. Segundo, porque o Dmae é o operador do sistema contra cheias da Capital, que entrou em colapso e foi destruído pela enchente de maio do ano passado. Para se ter uma ideia da complexidade da obra: construído em 1970, o sistema se estende por 68 quilômetros e é formado por diques, o muro da Avenida Mauá (uma parede de três metros de altura com 2,6 quilômetros de extensão e 14 comportas que são fechadas na subida das águas do Guaíba, protegendo a área central da cidade) e 23 estações de bombeamento de água. Funciona assim: os diques e o muro e as comportas da Mauá mantêm as águas do Guaíba fora da cidade, e as casas de bombas mandam para o Guaíba as águas da chuva e dos esgotos pluviais.
Contei toda essa história no post de 28 de maio de 2024 Sistema contra as cheias de Porto Alegre é velho, mas funcionava. Precisa ser consertado. Frente às informações que detalhei, os funcionários do Dmae que estão tocando as obras de conserto e atualização tecnológica do sistema contra enchentes precisam de paz para trabalhar. E não de uma espada pendurada acima da cabeça, que pode tirar o seu emprego de uma hora para outra. A Capital ainda está vulnerável às cheias. Nos últimos meses, a cidade foi alagada três vezes, uma delas no dia da posse do prefeito reeleito, na quarta-feira, 1º de janeiro. Os alagamentos transferiram para o dia seguinte a posse dos 35 vereadores, 22 reeleitos e 13 novatos, no parlamento municipal. Toda vez que chove em Porto Alegre as pessoas ficam temerosas que se repita o que aconteceu em maio de 2024, quando as águas do Guaíba subiram 5,61 metros, bem acima da marca de 4,76 metros da histórica enchente de 1941, até então a maior já registrada. Em 2024, as águas invadiram o Centro e vários bairros, deixando submersa a estação rodoviária e o Aeroporto Salgado Filho. O que interessa para todos os moradores da cidade é saber em que estágio está a reparação do sistema. Esta é a prioridade. A proposta da privatização do Dmae é velha. A discussão começou no governo do prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB), 53 anos (2017 a 2020). E foi retomada no primeiro mandato de Melo (2021 a 2024). Agora, nos primeiros dias após a posse para seu segundo mandato, o prefeito voltou a mexer na história da privatização. Segundo os seus aliados, porque há uma grande chance de ser aprovada na Câmara Municipal, onde Melo tem maioria de 22 vereadores. A privatização do Dmae faz parte de um conjunto de pautas (reforma administrativa, revisão do plano diretor, atualização do IPTU, fim da licença prêmio e publicidade) que o prefeito pretende aprovar na Câmara.
Aqui chamo a atenção dos colegas para o seguinte. Todos os estudos feitos para privatizar o Dmae são anteriores à enchente de maio de 2024. Esta enchente mudou tudo. E essa mudança está sendo levada em conta? Não sabemos. Por entender que as coisas na política se resolvem no dia a dia, não vou discutir as chances de Melo aprovar na Câmara a privatização do Dmae. Como já disse, e vou repetir, considero importante no momento que haja um ambiente de paz para que os técnicos da autarquia façam os consertos e as atualizações tecnológicas necessárias no sistema contra cheias da Capital. A rigor, a população não sabe o que está acontecendo nestas obras. O que nós jornalistas sabemos de concreto e noticiamos nos jornais é que a cidade continua alagando. Quem duvidar, basta olhar pela janela de casa na próxima chuva forte. Este tipo de situação cria o ambiente ideal para germinarem, durante a apuração do repórter, as fontes que só falam em off, sem citar o nome. Na maioria das vezes, são tecnocratas do governo municipal que tiveram seus interesses políticos e financeiros contrariados e tentam prejudicar os seus colegas vazando, frequentemente, informações no mínimo esquisitas para os repórteres. O que o prefeito tem dito, e com insistência, e que as obras estão sendo tocadas. Aqui e ali, ele dá pistas sobre as tais obras. A questão dos reparos e das atualizações técnicas no sistema contra as cheias de Porto Alegre precisa ser pauta prioritária nas redações dos jornais. Caso o prefeito insista na privatização, e tudo indica que será essa a sua opção, a disputa entre os que contra e os que são a favor contaminará o já complicado ambiente dos canteiros de obras. Julgo necessário fazer um alerta. O que escrevi não é opinião e muito menos fragmentos de algum relatório técnico sobre o trabalho de recuperação do sistema contra as cheias. Mas fatos que consegui apurar entre os envolvidos com as obras. Uma fonte alertou que os jornais do interior do Estado também devem começar a se interessar pelo andamento das obras porque uma eventual inundação da estação rodoviária ou do Aeroporto Salgado Filho espalhará prejuízos por todos os cantos do território gaúcho. Como já aconteceu.
Como sempre digo, sou um velho repórter estradeiro, 74 anos de idade, 40 e poucos de profissão, uns 30 anos e alguns meses vividos na redação de um jornal. Portanto, sei como funciona o jogo político. E não espero que na disputa política de Porto Alegre, uma das mais acirradas do Brasil, alguém deixe passar uma oportunidade de subjugar o seu adversário, mesmo que em prejuízo da comunidade. Mas vejam bem. Nos dias atuais, chamamos de “novo normal” do clima as catástrofes provocadas pela natureza devido a destruição do meio ambiente. Os políticos, especialmente os envolvidos na disputa municipal, vão levar algum tempo para entender essa nova realidade. Daí a importância da imprensa ficar atenta aos acontecimentos diários nos canteiros de obras do sistema contra as cheias de Porto Alegre.