Uma das verdades na disputa política no Brasil, principalmente no interior. Os melhores cabos eleitorais dos senadores e deputados federais são, pela ordem, os vereadores, os prefeitos e os governadores. Principalmente em se tratando de reeleição. A próxima eleição será a primeira na história da democracia brasileira em que esses cabos eleitorais vão pensar duas vezes antes de pedir votos para reeleger senadores e deputados federais. Por quê? A maioria deles considera que foi vítima de trairagem dos parlamentares, porque eles facilitaram o avanço do presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre as receitas municipais e estaduais. Citam dois fatos: o primeiro é Projeto de Lei (PL), aprovado pelo Congresso e sancionado por Bolsonaro, que estabeleceu um teto de 17% para a cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre combustíveis, energia elétrica, telecomunicações e transporte coletivo. Na quinta-feira (07/07), o presidente publicou um decreto no Diário Oficial determinando que os postos de combustíveis exibam uma placa com os preços praticados antes do PL e depois.
O segundo fato é a PEC da Bondade (Proposta de Emenda à Constituição), que já foi aprovada pelo Senado, onde teve um único voto contra do senador José Serra (PSDB-SP), e agora tramita na Câmara dos Deputados com uma enorme chance de ser aprovada. A PEC da Bondade, também chamada de PEC Kamikaze e por vários outros nomes, colocará na mão de Bolsonaro R$ 42,1 bilhões para serem gastos em benefícios sociais – há matérias na internet. A soma do dinheiro perdido com o teto do ICMS e a PEC da Bondade fará falta para as prefeituras e estados. Nunca tantos prefeitos, incluindo apoiadores do presidente da República, e governadores reclamaram como estão fazendo nos dias atuais. Mesmo sendo de partidos diferentes, senadores e deputados federais candidatos à reeleição sempre se entenderam com vereadores, prefeitos e governadores. Antes de seguir contando a história vou dar uma explicação que considero necessária para quem não é jornalista velho e estradeiro como eu. É sobre a palavra que usei: trairagem. O seu uso é muito comum nas delegacias de polícia. Durante uma investigação, os agentes procuram identificar nas quadrilhas os “traíras”, aqueles que entregam os seus companheiros de crime para salvar a sua pele. A palavra migrou para as redações, levada pelos repórteres que fazem a cobertura dos assuntos policiais, e acabou se integrando ao texto jornalístico, onde é usando em vários assuntos.
Voltando à história. O fato é o seguinte. Uma leitura minuciosa em tudo que temos publicado sobre a ação dos senadores e deputados na aprovação dessas medidas revela que o conteúdo tem deixado muito a desejar. Estamos mais preocupados com os danos que elas causarão às contas públicas do que em mostrar para os leitores como esse dinheiro fará falta para as prefeituras. Apenas mencionamos o fato, sem entrar em detalhes, partindo do princípio que o leitor sabe do que estamos falando. Pode até saber. Mas não sabe os detalhes. Nas cidades médias e grandes do Brasil a população mais impactada será a dos moradores das favelas. Onde a carência dos serviços públicos já é grande, principalmente na área de saneamento básico, saúde e educação. Nas cidades pequenas do interior do Brasil existem duas situações. A primeira é a dos municípios dos estados do Sul e do Centro-Oeste, onde a maioria da população é de classe média e os serviços municipais conseguem dar um bom nível de atendimento, principalmente para os filhos das famílias de baixa renda. A segunda situação é a dos municípios em que a maioria dos moradores é pobre e depende dos serviços sociais para sobreviver. Cada centavo conta para essas prefeituras. Conheço muito bem a situação porque sempre viajei muito pelo Brasil fazendo reportagem sobre conflitos agrários, migrações e crime organizado nas fronteiras. Andei por cidades, falei com pessoas e vi situações pelo interior do Brasil muito semelhantes às que encontrei nas cidades de Angola, na África, onde estive nos anos 90 durante a Guerra Civil. As pessoas não têm o que comer, nem remédios e muito menos educação. Claro que os senadores e deputados federais sabem dessa situação. Então por qual motivo resolveram apostar nas propostas do governo?
Os motivos pelos quais os senadores e deputados de situação e oposição resolveram apostar nas medidas do governo Bolsonaro são muitos e variados. Vou me deter apenas nos parlamentares do Centrão, que integram a base governamental. Esses parlamentares fizeram parte de todos os governos desde a primeira eleição direta para presidente da República, em 1989, que elegeu Fernando Collor de Mello. A marca registrada do Centrão é apoiar o governo até sugar todas as vantagens (emendas parlamentares, cargos e outros benefícios) possíveis e depois cair fora. De todos os presidentes da República, Bolsonaro é o que mais vantagens deu para o Centrão, como o orçamento secreto, um truque contábil que permite pagar emendas parlamentares sem saber o nome de quem pagou e o beneficiado. A pergunta é: pelas pesquisas de intenção de votos existe a real possibilidade do maior adversário de Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), se eleger no primeiro turno. O teto do ICMS e a PEC da Bondade têm como objetivo garantir que haja um segundo turno. Até as pedras das ruas do Brasil sabem disso. Qual a possibilidade de que isso aconteça? Ninguém sabe. Caso não dê certo, o Centrão vai desembarcar do governo e aderir ao vencedor das eleições. Há outra hipótese que devemos considerar nas nossas análises. Os vereadores, prefeitos e governadores se sentiram traídos pelos senadores e deputados federais que apoiaram a história do ICMS e da PEC da Bondade. Se eles fizerem “corpo mole” na campanha vai acontecer uma renovação considerável no Senado e na Câmara dos Deputados. Devemos ficar atentos a essa possibilidade.