Um personagem que é assíduo frequentador das delegacias de polícia assiste de camarote aos esforços do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) para sair do lamaçal em que se meteu. É o subtenente Fabrício Queiroz, 57 anos, reformado da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Queiroz, como é chamado nas manchetes dos jornais, foi operador de um esquema criminoso chamado “rachadinha”, que consistia em ficar com uma parte dos salários dos funcionários do gabinete do então deputado estadual do Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro, um dos filhos parlamentares do ex-presidente. Flávio foi eleito três vezes deputado (2002 a 2019) durante esse período. Além de operar a rachadinha, Queiroz serviu de ligação entre Flávio e o miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega, morto em fevereiro de 2020, em um confronto com a Polícia Militar no interior da Bahia. Os dois se conheceram no 18º Batalhão de Operações Especiais (Bope), aquele do filme Tropa de Elite. Nóbrega chegou a capitão do Bope e foi expulso e preso por ter se envolvido com bicheiros. Na época da prisão, o deputado Flávio fez uma homenagem para ele na Assembleia Legislativa do Rio.
Toda essa história explodiu nas manchetes dos jornais em 2018, quando Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil e Flávio, senador pelo Estado do Rio de Janeiro. Queiroz se tornou um problema para o presidente e o senador porque os jornais o ligavam à rachadinha e ao miliciano Nóbrega, que antes de ser morto na Bahia chefiava o Escritório do Crime, uma milícia de pistoleiros e matadores de aluguel que atuava na zona oeste da cidade do Rio. Queiroz esteve preso em 2020 por atrapalhar as investigações – há matéria na internet. Na ocasião, o então presidente e o senador o abandonaram à própria sorte e seguiram as suas vidas. Em fevereiro de 2020, escrevi o post PC Farias foi âncora de Collor no lamaçal e Queiroz é o de Bolsonaro. A longa e interessante história do que representou PC Farias para o ex-presidente da República Fernando Collor de Mello (1990 a 1992) está disponível na internet. Nos dias atuais, Queiroz faz parte de uma longa lista de ex-assessores que Bolsonaro usou para fazer o serviço sujo e foram deixados para trás quando os escândalos estouraram. Lembro os meus colegas repórteres que o subtenente reformado pode render uma boa conversa em off. Uma explicação para quem não é jornalista. Nas redações se usa o termo “off” quando o nome da fonte não é mencionado, um direito constitucional do jornalista. E se fala em “on” nas ocasiões que o nome da fonte é revelado. Voltando a nossa conversa. O espetáculo que Queiroz está assistindo de camarote é o rolo das joias no qual o ex-presidente está metido. Ele e a ex-primeira-dama Michelle receberam joias de presente de governos estrangeiros. Esses presentes pertencem à União. Bolsonaro tentou vender as joias. O operador desse crime foi o seu ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid e o seu pai, o general da reserva Mauro César Moreira Cid – há matéria na internet. Nas entrevistas que tem concedido, o ex-presidente tem dito, nas entrelinhas das suas declarações, acreditar que Cid e o seu pai vão “matar essa história no peito”, como Queiroz e outros que fizeram o serviço sujo para a família. Na quinta-feira (31/08), a Polícia Federal (PF) ouviu o depoimento de todos os envolvidos no caso das joias com o objetivo de cruzar as informações, uma tática comum de investigação. Bolsonaro e Michelle ficaram em silêncio, alegando que só falariam depois que os seus advogados tivessem acesso ao depoimento de Cid e do seu pai.
Por que Bolsonaro e Michelle não deram a versão deles sobre os fatos? Vou citar três motivos. O primeiro é que Cid e o pai dele não são Queiroz ou qualquer um dos outros que fizeram o serviço sujo e mataram a bronca no peito por não ter como fazer diferente. O segundo motivo é que pai e filho são considerados as laranjas podres das Forças Armadas, que estão fazendo um tremendo esforço para se livrar dos oficiais e graduados que se envolveram nas confusões armadas pelos bolsonaristas, como os atos terroristas de 8 de janeiro, quando quebraram tudo que encontraram pela frente nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal, em Brasília (DF). E, por último, é que, caso Cid não negocie uma delação premiada ou coisa semelhante com a Justiça, corre o risco real de ser condenado e ir para a cadeia. Um velho colega repórter policial, como eram chamados os jornalistas que faziam a cobertura das broncas nas delegacias de polícia nos tempos das máquinas de escrever nas redações, me chamou a atenção. Ele disse: “Os jornais escreveram que Bolsonaro, quando assumiu a Presidência da República, não seguia o rito do cargo e continuava se comportando como um deputado do baixo clero da Câmara”, afirmou, referindo-se aos parlamentares que têm pouca influência ou participação nos processos políticos mais importantes do Congresso. Tem razão. Enquanto deputado, Bolsonaro fazia as suas bobagens, como homenagear torturados do golpe militar de 1964, e ficava o dito pelo não dito. Como presidente, ele chamou embaixadores de vários países para denunciar que seria sacaneado por fraudes nas urnas eletrônicas. Por ter feito denúncias sem provas, foi condenado a oito anos de inelegibilidade.
Desde que Bolsonaro assumiu o seu mandato, em janeiro de 2019, tenho escrito que não o considero um gênio. Mas um cara esperto, que sabe sobreviver nas situações difíceis. Ele tomou precauções para sobreviver caso Cid e seu pai resolvam fazer delação premiada, ou coisa semelhante, para escaparem da cadeia. Uma matéria com o título Polícia suspeita que Bolsonaro fez procuração para se proteger, publicada no Estadão no dia 2 de setembro, diz que duas semanas antes de terminar o seu mandato o ex-presidente fez uma procuração em cartório nomeando para cuidar do seu acervo de presentes o coronel do Exército Marcelo Costa Câmara, que era assessor especial do Gabinete da Presidência da República. O coronel permanece trabalhando na equipe de Bolsonaro. Se essa precaução vai funcionar caso o tenente-coronel Cid resolva contar tudo, só o tempo dirá. O negócio é o seguinte. O caso das joias é um dos rolos do lamaçal em que está atolado o ex-presidente. Há uma fila de mais de uma dezena de casos pelos quais terá que responder perante a Justiça. Serão o destino desses rolos somado ao desempenho que terá o seu prestígio político para ajudar a eleger prefeitos em cidades importantes nas eleições no próximo ano que definirão o seu destino. A única coisa que podemos afirmar é que a situação de Bolsonaro não é confortável. Há muitos personagens que se envolveram direta ou indiretamente prestando serviços para a família do ex-presidente que têm informações que irão ajudar a fazer um perfil mais exato de Bolsonaro e dos seus filhos parlamentares: Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador, e Eduardo, deputado federal por São Paulo. Entender essa família ajudará a explicar a profundidade do poder dos militares saudosistas do golpe de 1964 nas Forças Armadas. Sabe-se lá quantos Queiroz existem por aí.