“Não sou sanfoneiro. Mais toco a noite toda”. Na semana da Páscoa de 2008, li essa frase na traseira de um caminhão de carga no interior da Bahia. É sobre o significado dela que vamos conversar. No dia que a li, eu viajava na boleia de um caminhão truck (aqueles com dois eixos atrás), colhendo informações que seriam transformadas na reportagem “Camicases do asfalto”. A matéria, publicada no jornal Zero Hora, descreveu a rotina dos caminhoneiros que trabalham com cargas horárias – aquelas que têm dia e hora para serem entregues no seu destino. Para cumprir os prazos, esses motoristas tomam o que chamam de “rebite”, medicamentos à base de anfetaminas, uma droga que tira o sono. Os pilotos kamikazes do Japão na Segunda Guerra Mundial também tomavam anfetaminas antes de mergulhar com seus aviões contra os navios americanos. Foram duas semanas de estrada, saindo da divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, transportando uma carga de arroz para Irecê, no norte baiano. De lá, levando tijolos e telhas para Mucuri, no litoral sul da Bahia. Na volta, apanhamos uma carga de mamão em uma cidadezinha no litoral do Espírito Santo para ser entregue na Ceasa/RS, em Porto Alegre. Só o motorista do truck sabia que eu era jornalista. Para os demais caminhoneiros que encontramos pela estrada e nos postos de abastecimento, eu era apenas o ajudante do motorista. Isso facilitou em muito a minha aceitação no grupo. Eu não fazia perguntas. Só escutava as conversas. Uma vez ou outra contava uma piada.
Voltei da viagem convencido de uma coisa. Assim como o óleo diesel move os motores dos caminhões, o rebite mantém os caminhoneiros acordados, suportando longas jornadas ao volante. É assim que funciona na prática o sistema de transporte de cargas no Brasil. Muito embora no papel o perfil seja outro, como determinam as leis trabalhistas e outras legislações que regulamentam o setor. Durante a pandemia, os caminhoneiros continuaram nas estradas, abastecendo o país. Portanto, o sistema que descrevi seguiu funcionando. Chamo a atenção dos meus colegas repórteres para o seguinte. O mês de março foi o mais letal da pandemia no Brasil. Morreram mais de 3 mil pessoas por dia. O sistema de saúde pública e privada em 25 dos 27 estados colapsou. Centenas de pessoas morreram nos corredores dos hospitais por falta de UTIs. Foi um caos. No meio do caos sanitário, três vídeos de acidentes de caminhão mereceram destaques nos noticiários. Vamos aos fatos. No início do mês de março, dia 6, um sábado, Anderson Pereira, 49 anos, pilotava uma moto Kawasaki Vulcan, levando na carona a sua esposa, Sandra Pereira, 47, na BR-101, município de Penha (SC). Uma carreta dirigida por um motorista de Camaquã (RS) simplesmente subiu na traseira da moto, matando Sandra e empurrando a motocicleta por 20 quilômetros, com Anderson pendurado na janela do caminhão tentando fazer o motorista parar – há um vídeo da cena na internet.
O carreteiro foi parado e preso em flagrante por homicídio. Disse que estava há dois dias dirigindo sem dormir e que pensou que tudo aquilo fosse um sonho. Na cabine foram encontrados vestígios de cocaína. Aprendi na viagem que fiz que os caminhoneiros não usam a cocaína com grande frequência por dois motivos: primeiro, porque é cara. Segundo, porque quando passa o efeito vem o sono. Já o rebite pode ser comprado em qualquer farmácia de beira de estrada. Tomando um comprimido de quatro em quatro horas, eles conseguem se manter acordados por longo tempo. Eu testemunhei caminhoneiros dirigindo 48 horas sem dormir. Nas conversas que tive na estrada, ouvi e vi que depois de muito tempo se rebitando eles começam a ter alucinações. O que vai acontecer no caso de Santa Catarina? O caminhoneiro já foi substituído por outro. Lembram que no início do texto citei a frase que li na traseira de um caminhão no interior da Bahia: “Não sou sanfoneiro. Mais toco a noite toda”. Eles ficam acordados tomando rebite. Na ocasião que fiz a matéria “Camicases do asfalto” conversei muito com seguradoras, donos de grandes empresas de transporte e caminhoneiros autônomos sobre o que acontece depois de um acidente. O inquérito policial é feito pela Polícia Civil da cidade onde ocorreu o acidente. Na maioria das vezes, os casos envolvendo caminhões exigem investigações complexas e demoradas, pois há muitas partes interessadas, como a transportadora, o dono da carga, as seguradoras, a concessionária da estrada e as vítimas. Raras são as delegacias das cidades de beira de estrada que têm estrutura para conduzir uma investigação desse calibre. E essa falta de estrutura para investigar os acidentes é um dos pilares que mantém esse sistema de transporte funcionando.
Uma investigação detalhada de um acidente envolvendo caminhão de carga traz benefícios para todo mundo. Por exemplo. No dia 13 de março, um sábado, o radialista e caminhoneiro Anderson Barbosa, o Barbozão, dirigia um bitrem carregado de gasolina e diesel, na BR-386. No trecho de mão dupla da estrada, km 350, em Estrela (RS), o caminhão bateu na murada da ponte sobre o Arroio Boa Vista e explodiu – a explosão foi documentada em um vídeo disponível na internet. O motorista morreu e a investigação do caso ficou com a Delegacia de Polícia Civil de Estrela. É uma investigação complexa, porque vai depender do resultado de várias perícias técnicas e do que restou dos tanques que carregavam a gasolina e o diesel. A história do acidente de Barbozão será contada pelos resultados das perícias e das imagens das câmaras de segurança no trecho da BR-386 que ele percorreu. O que vi na estrada durante a reportagem “Camicases do Asfalto” é que os caminhoneiros que transportam combustíveis e cargas vivas não se envolvem com rebite porque fazem viagens curtas. Geralmente de um dia. Entre os caminhoneiros, eles têm vários apelidos, o mais popular: “tiro curto”.
No final de março, dia 28, um domingo, um caminhão carregado de desodorante desgovernado bateu em um posto de pedágio na BR-050, em Campo Alegre de Goiás (GO), e explodiu – há vídeo na internet. Qual é a história dos bastidores desse acidente e dos outros dois? Elas são de grande interesse para os nossos leitores. Mas dificilmente a imprensa as contará, porque esse tipo de apuração é muito cara e demorada, exige colocar repórter na estrada por um longo período de tempo. E hoje as empresas de comunicação estão contando os centavos. E, em consequência, noticiam apenas o essencial. Mas essas histórias não vão desaparecer. Elas vão sobreviver na tradição oral dos caminhoneiros, os que rodam pelas estradas. Um vai saber um pedaço, outro, mais uma parte, e alguém vai acrescentar informações que julga serem verdadeiras. É assim que acontece. Um dia a história chega aos ouvidos de um repórter. Lembro-me das longas horas que passei conversando com os caminhoneiros quando fiz “Os Camicases do Asfalto”. Eles falam muito sobre os acidentes que aconteceram. A estrada está cheia de histórias à espera dos ouvidos de um repórter.