Liberdade de imprensa foi a pedra no sapato dos golpistas bolsonaristas

Ex-presidente Bolsonaro acreditou na próprias bravatas Foto: EBC

Lembro-me. Em 1964, tinha 14 anos e morava com a família em Encruzilhada do Sul, pequena cidade no interior gaúcho, na Serra do Sudeste, um lugar onde a água congela nos canos no inverno. Os jornais chegavam no final do dia à estação rodoviária da cidade, trazidos da Capital no porta-malas do Expresso Cometa, velho e valoroso ônibus que vencia os atoleiros da estrada de chão batido. Era uma mostra de poder econômico ir à rodoviária pegar o jornal. A minha família era pobre, portanto só conseguia ler o jornal dias depois, quando fosse colocado no lixo. Foi assim que, pela primeira vez, soube que os militares haviam derrubado o então presidente da República, João Goulart (1919–1976), o Jango, do antigo PTB, gaúcho de São Borja, na fronteira com a Argentina. Recordo-me que tinha uma foto na capa e um tanque de guerra rodeado por soldados armados até os dentes. No final dos anos 60, mudei-me para Porto Alegre e, na década de 70, entrei na Fabico, a faculdade de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Em 1979, comecei a trabalhar em redação, onde fiquei até 2014. Período agitado da minha vida. Por ter me especializado em conflitos agrários, crime organizado nas fronteiras e migrações, passava a maioria do tempo viajando em busca de histórias nos sertões do Brasil e dos países vizinhos. Hoje, levo uma vida mansa. Tenho tempo para ler, ver documentários e discutir o futuro da reportagem com os colegas na mesa do boteco. Não me afastei da reportagem. Escrevo livros, dou palestras e fico atento ao que acontece ao meu redor. Escrevi esta historinha para entrar pisando macio na nossa conversa. Vamos aos fatos. Na terça-feira (18/02), foi manchete no Brasil e notícia em vários países ao redor do mundo a denúncia (documento de 272 páginas) do procurador-geral da República, Paulo Gonet, 63 anos, ao Supremo Tribunal Federal (STF), acusando o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), 69 anos, e outras 33 pessoas (24 militares da ativa, reserva e reformados) de terem montado uma organização criminosa para dar um golpe de estado. A denúncia do procurador-geral da República foi feita com base em uma investigação da Polícia Federal (PF) que começou em 2022 e teve uma série de episódios, sendo que o principal aconteceu em 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram e quebraram tudo que encontraram pela frente no Palácio do Planalto, no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso, em Brasília (DF). O relatório final do inquérito da PF tem 884 páginas e indiciou 37 pessoas, entre elas Bolsonaro. Na segunda semana de novembro do ano passado, a PF encaminhou o relatório para o STF, que uma semana depois o enviou para a Procuradoria-Geral da República (PGR) para decidir o destino da investigação. Na terça-feira, o procurador-geral fez a denúncia ao STF, que começou a dar andamento ao caso.

Este caso vem sendo acompanhado online pelos jornais na cobertura diária. As redações dos dias atuais são completamente diferentes das da minha época (1979 a 2014). Não só pelo avanço da tecnologia das comunicações. Mas também pela mudança no perfil dos repórteres. No meu tempo, o canetinha, como eram chamados os repórteres, fazia a investigação e o texto. Hoje, ele faz a investigação, o texto, as fotos, os vídeos e as sonoras e publica nas várias plataformas da empresa. Eles são jovens, superatarefados e ganham muito mal. Apesar tudo isso, atualmente a cobertura diária feita pelos jornais brasileiros é abrangente e sólida. Assim como a minha geração, a atual se supera na hora do conflito. Tudo indica que esta será a primeira vez na história política do Brasil que golpistas sentarão no banco dos réus. É um avanço tremendo graças à liberdade de imprensa. Antes não era assim. Lembro que só começamos a tomar conhecimento dos bastidores do golpe militar de 1964 depois de 1985, quando aconteceu a redemocratização do país, que teve como o seu marco a publicação da Constituição de 1988, que assegurou a liberdade de imprensa. Há centenas de documentários, livros e reportagens sobre este período. Dos muitos autores, vou citar três: Começo com o livro 1968. O Ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura, 93 anos. Depois, a coleção Ditadura Envergonhada, Escancarada, Derrotada e Encurralada, escrita pelo jornalista Elio Gaspari, 81 anos. E, por último, o livro Ainda Estou Aqui, do jornalista e dramaturgo Marcelo Rubens Paiva, 65 anos, que conta a história do seu pai, o deputado federal Rubens Paiva, do PTB. Cassado pelos militares logo após o golpe, Paiva foi preso pelo regime em 1971 e nunca mais foi visto.

Ainda Estou Aqui foi transformado em filme pelo cineasta Walter Salles, 68 anos, que já ganhou vários prêmios e é candidato ao Oscar, premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, de Los Angeles (EUA). Falei sobre o assunto no post de terça-feira (11/02) A imprensa e o caso do presidente da Câmara que não acredita que houve tentativa de golpe. Paramos aqui para refletir. Tudo que citei – livros, documentos, reportagens e, por último, o filme Ainda Estou Aqui – vieram a público anos depois de 1964, quando se instalou no país a censura. Para arrematar a nossa conversa. Bolsonaro era do “baixo clero”, como são chamados pela imprensa os parlamentares sem notoriedade na Câmara dos Deputados. Sempre que queria conseguir um espaço nos jornais falava para os jornalistas sobre a sua admiração pelos militares golpistas de 1964. Ou outro absurdo que conseguisse espaço nos jornais. Lembro que logo que assumiu o governo, todos os dias tinham um absurdo para despertar a atenção da imprensa. Escrevi várias vezes que o ex-presidente era um bravateiro. E que não teria coragem de tentar um golpe de estado porque tinha muito a perder. A começar, porque prejudicaria os seus três filhos parlamentares: Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador pelo Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal por São Paulo. Eu estava errado. Bolsonaro acreditou nas suas próprias bravatas e tentou dar o golpe. Fracassou e agora vai sentar no banco dos réus. A liberdade de imprensa foi a pedra no sapato da turma golpista de Bolsonaro.

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