Não ouvi da boca de ninguém. Eu estava lá e vi acontecer. Durante a Ditadura Militar (1964 a 1985), os agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI) visitavam donos de empresas ordenando que não colocassem anúncios nas revistas e jornais da imprensa alternativa – veículos que driblavam a censura prévia imposta aos grandes jornais. A publicação mais popular no país foi o semanário carioca O Pasquim, que circulou entre 1969 e 1991. No Rio Grande do Sul, havia o Coojornal, publicação mensal que circulou de 1976 a 1982 editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (Coojornal). Eu não era jornalista quando trabalhei na cooperativa, entre os anos de 74 a 78. Para me exibir, hoje digo que era o responsável pelo departamento de circulação. Na verdade, eu fazia de tudo: dirigia Kombi, entregava os jornais nas bancas, “assistia ao parto” (a rodagem do jornal) e encarava o que mais aparecesse pela frente. Foi ali que decidi ser repórter.
O responsável pela venda dos anúncios no Coojornal era o Gabriel Matias, um homem alto, magro e de voz mansa, um gentleman. Lembro-me das batalhas do Matias para conseguir anúncios. Não era fácil. Às vezes, na negociação com o anunciante, parecia que tudo estava correndo bem. Então, de uma hora para outra, ele desistia. Mas havia também um punhado de anunciantes que fazia vistas grossas para as advertências do SNI e continuava anunciando. Eu conversava com os donos dos pontos de venda do jornal, principalmente as bancas do centro de Porto Alegre. Recordo de um – não vou mencionar o nome – que tinha uma banca no caminho que os militares percorriam para chegar ao quartel-geral do então III Exército. Em tom de brincadeira, oficiais recomendavam para ele tirar de exposição o Coojornal. Principalmente quando a manchete era contra o regime. Em conversas que tive com distribuidores de outras publicações alternativas do país, ouvi relatos semelhantes. Nas palestras que faço pelas redações do interior do Brasil e nas faculdades, vez ou outra lembro aqueles tempos.
Esse tipo de assunto faz parte das lembranças que ainda assombram o sono de velhos repórteres, como eu, que tenho 69 anos de idade, 40 de profissão e muita quilometragem rodada. No início de novembro, vi o vídeo do presidente Jair Bolsonaro (PSL-RJ) xingando e ameaçando a Rede Globo por ter publicado no Jornal Nacional uma reportagem que envolvia o seu nome na execução da vereadora carioca Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes – há vasto material disponível na internet. Bolsonaro ameaçou endurecer a renovação da concessão da Globo em 2022. E também sugeriu que os consumidores não comprassem de quem anunciasse na emissora. Ao ouvir o presidente falar dos anunciantes, um sinal de alerta ligou dentro da minha cabeça: lembrei que durante a Ditadura Militar era assim que ameaçavam os anunciantes da imprensa alternativa.
No final da primeira semana de novembro, o empresário Luciano Hang, dono da Havan, publicou um comunicado dizendo que estava retirando anúncios da sua empresa na Globo por não concordar com a linha dos noticiários – há várias matérias sobre o assunto na internet. Na mesma nota, advertiu: “Por ora, manteremos nossas propagandas nas afiliadas e jornais locais, que ainda informam a sociedade de forma mais isenta e conservadora”. Aqui quero conversar com os jovens repórteres. O dono da Havan tem o direito de apoiar Bolsonaro, de queimar o seu dinheiro em praça pública, se assim quiser, e de tirar e colocar os anúncios do seu comércio onde bem entender. A Constituição de 1988 lhe garante isso. Mas ela nos garante também a liberdade de imprensa. Muitos colegas, como o jornalista Vladimir Herzog (assassinado em 1975), deram a vida por ela. O dono da Havan está usando a sua retaliação à Globo para mandar um recado para nós, jornalistas, sobre como devemos nos comportar. Isso está nas entrelinhas do seu comunicado. Hang se meteu na briga do Bolsonaro com a Globo. E na briga do presidente com os repórteres. É simples assim.
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