Se colocarmos em fila indiana todos os crimes atribuídos ao ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), aos seus ministros e aos funcionários graduados do seu governo (2019 a 2022), uma pergunta salta aos olhos: sobrava tempo para administrarem o país? Lembrei-me de fazer essa pergunta na sexta-feira (20/10), quando os espaços nobres dos noticiários estavam ocupados pelas manchetes da guerra Israel versus Hamas. E, ao lado delas, igualmente ocupando generosos espaços nas primeiras páginas, estavam as notícias sobre a operação da Polícia Federal (PF) que descobriu que, durante o governo Bolsonaro, funcionários da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) usaram um sistema de espionagem comprado em Israel para rastrear ilegalmente mais de 10 mil telefones celulares. Dois funcionários foram presos, Rodrigo Colli e Eduardo Yzycky, e cinco diretores foram afastados, entre eles Paulo Maurício Fortunato Pinto, em cuja residência os federais apreenderam US$ 171 mil (R$ 872 mil). Outros 24 mandados de busca e apreensão foram cumpridos em três estados e no Distrito Federal (DF). A história da Abin recém está começando, ela tem potencial de ocupar por um bom tempo os noticiários, assim que começarem a ser conhecidos os nomes dos espionados. A maioria deles vive em Brasília (DF), uma cidade onde não tem peixe pequeno.
Não vou citar números dos crimes cometidos no governo Bolsonaro porque não há uma lista confiável. O que se pode afirmar com toda a certeza, por terem sido fatos que publicamos, é que os processos (em várias fases de tramitação), os inquéritos policiais (ativos) e as investigações (preliminares) que estão rolando somam centenas. Tratei do assunto no post Bolsonaro saiu das páginas da história política do Brasil para a policial (30/06). Também não vou comparar o governo do ex-presidente com qualquer outro. Por quê? Aconteceu um episódio inédito na história recente do Brasil: a pandemia causada pela Covid-19, declarada em março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Até o aparecimento do vírus, os espaços nobres dos noticiários eram ocupados pelas coisas exóticas e cruéis ditas pelo então presidente e os seus ministros contra os direitos humanos, as minorias, as homenagens a torturadores do golpe militar de 1964 e aos milicianos do Rio do Janeiro, como o ex-capitão Adriano Nóbrega, do Batalhão de Operações Especiais (Bope), aquele do filme Tropa de Elite, demitido por ter se envolvido com bicheiros – há matérias na internet. Durante a pandemia, a enxurrada de asneiras ditas pelo governo não diminui. Muito pelo contrário. Aumentou, porque Bolsonaro viu no negacionismo do poder de contaminação e mortalidade do vírus uma oportunidade de ganhar espaço na imprensa ao redor do mundo. E realmente ganhou, às custas do pânico das famílias brasileiras, porque não existiam remédios contra a Covid e muito menos vacinas. Era rezar para não ser a próxima vítima do vírus. Assim que descobriram as vacinas, o governo fez de tudo para boicotá-las. Toda essa história é contada nas 1,3 mil páginas do relatório produzido pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid-19, a CPI da Covid. Esse relatório coloca as digitais de Bolsonaro e dos seus ministros nas 700 mil mortes de brasileiros pela Covid – há abundância de matérias sobre o caso na internet.
Os crimes que foram atribuídos ao governo Bolsonaro pelo relatório da CPI da Covid repousam nas gavetas das autoridades em Brasília (DF), como a Procuradoria-Geral da República (PGR). São delitos grandes demais para serem esquecidos. O legado que o governo Bolsonaro deixou foi a impressão de que nos minutos seguintes ao assumir o seu mandato, em janeiro de 2019, ele colocou em prática um projeto de governo que tinha como foco a destruição da democracia brasileira e a montagem de um sistema que permitisse a sua permanência no poder pelo tempo que lhe fosse conveniente. Projeto semelhante tinha o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump (republicano), que em 6 de janeiro de 2021 incentivou a invasão do Capitólio pelos seus seguidores, com o objetivo de impedir que o Congresso americano referendasse a vitória do seu sucessor, o atual presidente Joe Biden (democrata) – há matéria na internet. Na mesma linha política, da extrema direita, perfila-se o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que responde a dois processos na Justiça israelense e tem tentado mudar a lei para escapar da punição. Essa tentativa, na opinião de respeitados analistas políticos, acabou polarizando a política do país e criou a oportunidade para que acontecesse o ataque dos terroristas do Hamas ao território de Israel – há matéria na internet. Há uma teoria do ex-assessor de Trump Steve Bannon de que quanto mais encrencados com a Justiça estiverem os ex-presidentes do Brasil e dos Estados Unidos melhor será para a imagem deles. Tenho lá as minhas dúvidas sobre a teoria. Vou dizer duas: a primeira é que existe uma diferença entre a legislação eleitoral dos dois países. A Lei da Ficha Limpa, por exemplo, existe só no Brasil. E a outra é a liberdade de imprensa, que garante aos leitores informações confiáveis sobre o andamento da disputa política, entre outros assuntos.
Para arrematar a nossa conversa. Sou um velho repórter estradeiro, 73 anos, 40 e tantos na lida jornalística. Confesso que fui um dos que escreveu que as asneiras ditas pelo ex-presidente brasileiro eram bravatas. Não acreditava que existisse um plano de um golpe de estado. Tinha vários motivos para ter tal crença. Por exemplo, por três décadas, Bolsonaro foi um deputado do chamado baixo clero da Câmara, que conseguiu manter o seu mandato graças a uma eficiente estratégia que consistia em, uma vez ou outra, contar para os repórteres uma asneira que rendesse uma matéria de capa nos jornais. Com essa estratégia ele garantia a sua reeleição e acumulava prestígio político para eleger também três dos seus filhos. Defendi a tese de que, caso tentasse uma loucura, tipo um golpe de estado, perderia tudo e acabaria preso. Pois ele tentou dar um golpe em 8 de janeiro, quando os seus seguidores quebraram tudo que encontraram pela frente nos prédios do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Essa e outras façanhas contra a lei o tornaram inelegível pelos próximos oito anos. Por enquanto, sobrevive politicamente graças a sua habilidade de ser notícia de destaque.