O repórter tem o hábito de noticiar o que considera importante na história e deixar o resto apodrecendo. Mas muitas vezes também há conteúdos valiosos naquilo que descartamos num primeiro momento. Por isso, depois de publicar o que julgamos ter sido o mais relevante do fato, é preciso sempre revisar as nossas anotações, gravações, conversas e acontecimentos registrados na memória. Aprendi isso fazendo coberturas que, pela sua importância, reuniam um grande contingente de repórteres nos rincões do Brasil. Portanto, era uma disputa acirrada pelo furo. Nessas ocasiões era tradição, depois de todo mundo mandar a matéria para a redação, se reunir em um boteco para jantar e encher a cara. Depois de tirar o primeiro sono no hotel, eu ficava revendo as minhas anotações e gravações e pensando no que tinha visto de importante e não tinha dado bola. Não foram uma nem duas. Foram várias vezes que percebi ter deixado o mais relevante para trás. Uma delas eu transformei em livro, País-Bandido (2003). Usei essa técnica para vasculhar o vídeo da reunião do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) com o seu ministério no mês de abril. A divulgação do vídeo aconteceu no mês passado, depois de ser autorizada pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ali tem muitas histórias que merecem a nossa atenção. Uma delas eu encontrei no ministro da Educação, Abraham Weintraub, 48 anos.
A fala do ministro Weintraub não durou mais de cinco minutos. E o que nos chamou atenção e acabou nas manchetes de todos os noticiários do Brasil, e ao redor do mundo, foi ele ter chamado de “vagabundos” os ministros do STF e sugerir a prisão deles. Não tinha como não virar manchete um ministro ter desrespeitado um dos pilares do nosso modo de vida, o STF. Mas ele não falou só isso. Também lembrou a Bolsonaro porque ele estava ali: para romper o sistema político corrupto e cheio de negociatas. Foi por isso que o povo o elegeu, para mudar o regime. Essa parte da conversa de Weintraub foi esquecida por nós. E sobre isso que quero conversar com meus amigos repórteres, principalmente os mais jovens. Vejamos: durante toda a sua vida o presidente e os seus filhos Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador do Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal de São Paulo, viveram com um pé do lado da linha da legalidade e outro na ilegalidade. Um exemplo fartamente documentado, por investigações policiais, é o flerte da família com as milícias do Rio. O fio da meada para entender esse flerte é o caso do miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), a organização militar que ganhou fama com o filme Tropa de Elite. Na campanha presidencial, Bolsonaro acabou atraindo para o seu lado organizações profissionais de militantes da extrema direita ligadas aos movimentos nazistas, Ku Klux Klan, ocultismo, terraplanismo e um tipo especial de oportunista, que são profissionais que fracassaram em suas carreiras e colocaram a culpa no sistema e agora querem a desforra.
Aqui é o seguinte, chamo a atenção principalmente dos meus jovens colegas repórteres. Os milicianos do Rio se interessam por dinheiro. Quem abrir caminho para eles faturar é amigo, quem colocar obstáculo é inimigo. É assim que funciona. Já esse pessoal das organizações de extrema direita está nessa pelo poder. Dinheiro é migalha, eles querem é implantar um novo regime. É essa promessa que eles exigem que o presidente cumpra. Não sei a qual das organizações o ministro Weintraub pertence. Mas sei que é um hábil jogador na disputa pela atenção do presidente. Vejamos: no dia 19/04, o presidente acompanhou um grupo de manifestantes até a frente do quartel-general do Exército, em Brasília, pedindo a volta da ditadura militar. Isso nunca tinha acontecido no Brasil. No dia da reunião do vídeo, Weintraub lembrou ao presidente os motivos pelos quais ele tinha sido eleito. A resposta de Bolsonaro foi uma extensão à cobrança do seu ministro, adicionando mais informações pejorativas sobre quem vive em Brasília. A pergunta: o que nós escutamos e vimos do depoimento de Weintraub, incluindo as ofensas aos ministros, foi uma jogada ensaiada entre ele e o presidente? O tempo vai responder a essa pergunta.
A cada manifestação de apoio ao seu governo nos fins de semana, o presidente vem radicalizando mais. A encenação das tochas feita pelo Grupo dos 300 – um acampamento de militantes bolsonaristas em Brasília – na frente do STF é um dos símbolos da Kla. Mais ainda. Na sua última aparição entre os manifestantes que o apoiam em Brasília, o presidente chegou a bordo de um helicóptero. Nos anos 30, na Alemanha, durante a campanha eleitoral, Adolfo Hitler chegava de avião minutos antes ao local dos seus discursos. A ideia era de que ele vinha dos céus para salvar o povo alemão. Todo o enfrentamento que o governo Bolsonaro está fazendo para colocar aos seus serviços o STF, a Procuradoria-Geral da República (PGR), a Câmara dos Deputados e o Senado Federal segue o roteiro do que aconteceu na Alemanha nos anos 30. Há livros, documentários e uma vastidão de informações disponíveis na internet. Não é por outro motivo que o ministro do STF fez o comentário reservado comparando o Brasil à Alemanha nazista. O presidente Bolsonaro está muito enganado se acredita que esse pessoal ligado às organizações de extrema direita ficará satisfeito apenas com o “teatrinho” que ele participa nos fins de semana.
A história nos ensinou que esses apoiadores do presidente não ficarão satisfeitos com o “teatrinho”. Eles apoiaram Bolsonaro porque acreditaram que ele iria mudar o regime. Ou pelo menos faria uma tentativa forte. Só para lembrar. Na Alemanha de 30, antes de conseguirem chegar ao poder, os nazistas foram parar na cadeia, inclusive Hitler. Depois voltaram e a devastação que a crise econômica gerada no mundo pela quebra da Bolsa de Valores nos Estados Unidos os ajudou a convencer o povo que eles eram a salvação. Atualmente, a crise sanitária causada no mundo pelo coronavírus vai fazer parecer brincadeira de criança a quebra da Bolsa. Uma grande crise econômica vem por aí. O ministro Mello tem razão de estar preocupado.