Não foi pelos 600 reais, mas pela satisfação de fraudar

Ter posses e cometer um crime contra uma pessoa necessitada no meio de uma emergência sanitária é um caso que vai além do inquérito policial. Foto: arquivo pessoal

imprensa brasileira vive um dos seus bons momentos. Nos últimos 30 anos, essa é a primeira grande crise nacional em que estou fora da redação, no outro lado do balcão, como gosto de me exibir. Portanto, não estou “na correria” e tenho tempo de vasculhar os conteúdos de todos os noticiários de jornais (papel e site) ,TVs (aberta e cabo) e rádios (as principais). Ainda dou-me o luxo de dar uma espiada no que andam produzindo e publicando os colegas do interior do país. E de ler livros e assistir a documentários que considero relevantes para a atual situação política, econômica e sanitária do Brasil. Não faço isso por saudosismo. Faço para me manter atualizado. E poder tornar interessante  o meu blog, que tem como foco conversar com os colegas, especialmente os jovens que estão na “correria”.

Antes de começar a contar a história, vamos descrever os fatos que ergueram o pano de fundo no qual a fraude no auxílio emergencial aconteceu. Foi durante a maior crise sanitária que o Brasil enfrenta em um século, em que uma pandemia provocada por um novo tipo de  coronavírus  já contaminou 1,5 milhão de pessoas no país e matou 60 mil. No mundo, em 190 países, o vírus infectou 10 milhões de pessoas e já matou mais de 500 mil. As imagens sobre o Brasil que correram o planeta são de covas coletivas abertas em Manaus (AM) e doentes morrendo nas filas das emergências médicas do Rio de Janeiro por falta de vagas nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTI).

 
Voltando a contar a história. Muito antes de se tornar um assunto público, logo após o pagamento das primeiras parcelas dos R$ 600, já circulavam  boatos sobre fraudes cometidas por pessoas que estariam inclusive se exibindo nas redes sociais pelo seu feito. Principalmente nas cidades pequenas e médias do interior do Brasil. Uma investigação do Tribunal de Contas da União (TCU) confirmou que 620 mil pessoas que não tinham direito ao benefício o haviam recebido. Podemos dizer que existem três tipos de beneficiários ilegais: os quadrilheiros – que se organizaram para retirar o dinheiro; pessoas que não se habilitaram para receber, mas acabaram recebendo por um erro do governo; e, por último, os que não tinham direito, por serem pessoas de posses, mas que conseguiram o dinheiro cometendo fraude. E foram para as redes sociais “cantar marra”.
De uma maneira geral, as informações sobre os 620 mil que receberam o benefício sem merecer saíram na imprensa em forma de pequenas notícias. A maioria sem esclarecer quem eram os beneficiários ilegais.  Esse pouco destaque no noticiário fortaleceu as histórias que circulavam nas redes sociais de pessoas que se vangloriavam de terem recebido o dinheiro sem terem direito. A soma de dois fatores contribuiu para que a história recebesse um tratamento diferente da imprensa gaúcha. O primeiro é que ela chegou aos ouvidos dos experientes repórteres Humberto Trezzi, de Zero Hora, e Giovani Grizotti, da RBSTV. Eles tiveram o trabalho de limpar a história. Primeiro retirando os nomes que não estavam na relação do TCU e que foram acrescentados  por vários motivos, principalmente pela disputa política. Não podemos esquecer que é ano de eleição municipal. Em seguida, cruzaram os nomes que restaram com as redes sociais para identificar quem eram os bandidos, quem estava ali por erro do governo e quais fraudaram pelo prazer de cometer o crime. Depois de limparem a história partiram para as entrevistas, o que chamamos nas redações do “ouvir o outro lado”. Pronta a matéria para ser publicada no Fantástico e na Zero Hora aconteceu o segundo fator que tornou a publicação dessa história diferente no Rio Grande do Sul.

Uma das entrevistadas, Ana Paula Brocco, de Espumoso, pequena cidade agrícola, conseguiu uma medida liminar do juiz Daniel Silva que censurou previamente a matéria. Em um primeiro momento a sentença do juiz foi confirmada pela desembargadora Maria Isabel de Azevedo, da 19ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça. Dias depois a desembargadora voltou atrás e derrubou a sentença do juiz Silva. No mesmo dia, horas depois da decisão da desembargadora, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal  (STF), também anulou a decisão do juiz.  A matéria ficou censurada durante 11 dias. E nesse tempo os amigos da Ana Paula foram para as redes sociais se vangloriar de, além de ela ter ganho indevidamente os R$ 600, ainda ter conseguido trancar a reportagem. Por conta de ter sido uma história bem apurada e ter sido proibida pela Justiça,a reportagem teve um grande repercussão e mostrou  que as pessoas fraudaram   merecem a nossa atenção

E por que merecem nossa atenção?  Esse comportamento é um sinal de que alguma coisa não está certa no nosso modo de vida. Talvez seja no sistema de ensino. Ou na pregação dos padres, pastores e outros religiosos. Um alerta semelhante foi dado pelo psicanalista  Walter C. Langer (1899-1981). Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo dos Estados Unidos contratou Langer para estudar a mente do então ditador da Alemanha nazista, Adolf Hitler. O objetivo do trabalho era permitir que os estrategistas americanos se antecipassem às decisões tomadas por Hitler. O estudo foi publicado no livro A Mente de Adolf Hitler, um belo trabalho e uma leitura obrigatória para os repórteres. Langer afirma que Hitler fez o que fez porque tinha alguma coisa de errado com a sociedade alemã.

 Por tudo isso é que essas pessoas que fraudaram pelo prazer de fraudar merecem a nossa atenção. Pelo que fizeram vão responder perante a Justiça. Mas o inquérito policial não irá responder à pergunta. Por que fizeram, considerando que o mundo vive uma crise de saúde pública? Nós precisamos explicar o porquê ao nosso leitor. Sou um repórter velho e como todos sou cheio de história. Certa vez fui entrevistar um cara que ficou famoso em Porto Alegre por dar “trote” na emergência do Hospital de Pronto Socorro (HPS). Depois que guardei o bloco de anotações, comecei uma conversa mole com ele e no final perguntei a única coisa que interessava saber: “Qual é a graça do trote?”. Ele me respondeu: “É poder fazer”.
Meus colegas, principalmente os jovens repórteres, o mundo que vem por aí depois do vírus ninguém sabe como será. Algumas coisas que estão acontecendo me preocupam. Por exemplo, a preocupação de jornalistas de serem portadores de boas notícias. Quem vai comprar o jornal ou assinar o site para saber das coisas boas? Desde que o mundo é mundo, as pessoas procuram no nosso trabalho as explicações para os acontecimentos.  Essa crise deu uma segunda chance de sobrevivência para os noticiários voltarem a ser relevantes perante os leitores. Não a joguem fora. 

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