O Bairro Boêmio de Porto Alegre acaba se não existir o conflito entre moradores e frequentadores

Se o diálogo entre as partes, a criação de novas leis ou a aplicação das já existentes solucionarem a briga entre os moradores e os frequentadores dos bares da Cidade Baixa, o Bairro Boêmio de Porto Alegre acaba, porque o conflito é parte da atração. Foi assim que aconteceu com o Bom Fim, que foi, durante os anos 60 e 70 e parte dos 80, o Bairro Boêmio da Capital. Dos tempos da boêmia no Bonfa – apelido carinhoso do lugar –, restaram documentários, músicas, piadas e a nostalgia dos velhos que eram jovens naqueles barulhosos anos.

Sem o conflito entre os boêmios e os moradores o bairro, perde a graça, e a decadência econômica assume o lugar dos risos, da gritaria e do som da música. Essa é a lição que a história  da cidade mostra. Bem antigamente, existiam as regiões dos cabarés – Ilhota (perto da Zero Hora) e Rua Voluntários da Pátria (liga o Centro Histórico ao Bairro Navegantes). Daquele tempo, ficaram as músicas de Lupicínio Rodrigues. Aqui, quero chamar a atenção dos meus colegas repórteres, principalmente dos novatos, para olharmos a questão do Bairro Boêmio como se fossemos antropólogos. Vou relatar uma experiência. Eu tenho quatro filhos, duas gurias nascidas nos anos 80, um guri, no ano 2000, e outra menina em 2006. Em 1983, eu comecei a trabalhar como repórter em Zero Hora. Lembro que, todos os finais de semanas, eu estava no Bom Fim fazendo matéria de rolo entre moradores, boêmios, brigadianos e motoristas – que reclamavam dos bêbedos no meio da rua. Aqui, atenção: estou falando nos tempos do Regime Militar, quando os brigadianos chegavam e baixavam o pau, e pronto.  A cada conflito com os policiais militares, os bares da região se tornavam mais atrativos para os jovens da época.

Para mim, era um saco fazer matéria no Bom Fim. Primeiro que, nos anos 70, quando estudava na Fabico (faculdade de comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), eu enchia a cara no Bar do João. Muitas vezes, eu chegava para fazer matéria dos rolos e sempre encontrava um bêbedo amigo dos velhos tempos para me chamar de “arrependido” – referia-se aos lutadores contra o Regime Militar que eram torturados até concordarem em fazer declarações públicas em favor dos militares. Os anos se passaram, eu me especializei em conflitos agrários e passava mais tempo na estrada do que em Porto Alegre. Até que um dia, num fim de semana, uma das minhas filhas, que já era adolescente, me pediu para deixá-la em um fim de tarde no Bom Fim. Imediatamente, me vieram à mente os tempos antigos. Disse algumas coisas para ela sobre o perigo, mas entrou em um ouvido e saiu pelo outro.

Fui levar na minha filha no Bom Fim na minha Brasília – carro popular da época. E, para a minha surpresa, o velho Bonfa tinha virado cult para os jovens. Eles ficavam no meio da rua, atrapalhando o trânsito, os bares cheios de gente, alguns traficantes perambulando, muitos vendedores ambulantes, e uns poucos brigadianos observando de longe. E os moradores indignados com a algazarra dos jovens. As matérias nos jornais sobre os conflitos entre moradores, frequentadores e brigadianos tinham escasseado. Eram outros tempos. O país tinha se democratizado, o prefeito de Porto Alegre era eleito – no tempo dos militares, era nomeado –,  e a Polícia Militar não podia mais sair baixando o pau.

O tempo passou. As minhas duas filhas cresceram, e a boêmia da Bom Fim migrou para a Cidade Baixa – tem um monte de matérias na internet sobre teses a respeito da mudança de endereço dos boêmios. O meu filho, que nasceu no ano 2000, é um adolescente e jamais me pediu para deixá-lo na Cidade Baixa. A rotina de lazer dele é bem diferente das minhas outras duas filhas: ele passa horas e horas no computador e vai a festas em sítios e casas de espetáculo. Lembro que, durante a cobertura dos conflitos de 2013 – manifestantes tomaram as ruas da cidade lutando contra o preço da passagem de ônibus –, eu notei que o público na Cidade Baixa era bem mais velho do que o que frequentava o Bom Fim. Aqui, o seguinte: quem andou pela Cidade Baixa durante dos jogos da Copa do Mundo, em 2014, viu gente de vários cantos do mundo. Para onde eles iriam se não tivesse o Bairro Boêmio?

 

Acredito que o meu filho vai para a Cidade Baixa quando estiver mais velho. Assim como a minha filha de 11 anos. O conflito que existe hoje entre frequentadores e moradores é bem menor do que o do Bom Fim. Mas barulhento o suficiente para virar notícia de jornal. Como repórter, eu sei que a notícia tem poder de atrair a curiosidade das pessoas. Portanto, se acabar o conflito, termina a notícia, e os boêmios vão migrar para outro lugar onde a cerveja e a batatinha frita tenham preços compatíveis com os seus bolsos.  É assim que acontece, né?

One thought on “O Bairro Boêmio de Porto Alegre acaba se não existir o conflito entre moradores e frequentadores

  1. O conflito não é entre boêmios e moradores. Disse bem, “frequentadores”.

    Boêmios são, por natureza, amorosos, bebedeiros, respeitosos, gostosos, tesudos. Incluo-me lá no fim da fila dos bons, isso vem de berço, desde menino sou assim.

    O conflito é entre vagabundos sem vergonhas e moradores. Sou boêmio e morador.

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