O brutal assassinato da jovem Kelly Cristina Cadamuro, 22 anos, por um caroneiro revive para os pais o pesadelo de saber que os seus filhos andam pelas estradas com desconhecidos ao seu lado. E, para os repórteres nas redações, a certeza que os assassinos de jovens viajantes não estão mais nos postos de combustíveis pedindo carona, eles migraram para os aplicativos da internet. Mas continuam tão letais como eram nos anos 60, quando tornou-se um modo de os jovens pegarem a estrada em busca dos seus sonhos, muitas vezes brutalmente cancelados pelos matadores. Kelly foi morta na estrada, no percurso de 50 quilômetros entre as cidades mineiras de Frutal e Itapagipe pelo foragido Jonathan Pereira do Prado infiltrado no grupo de caronas do WhatsApp da vítima. Ela saiu do interior de São Paulo para encontrar-se com o seu namorado em Minas Gerais e levava um carona para repartir os custos da viagem.
Prado foi preso com outros dois cúmplices, Wander Luis Cunha e Daniel Teodoro Silva. A ficha policial do matador é extensa e recheada de atos de violência contra suas vítimas, principalmente mulheres. A sua captura pela polícia foi facilitada pelo extenso rastro de provas deixado por ele e seus cúmplices. Toda a história pode ser encontrada em reportagens disponíveis na internet. O que quero refletir com os meus colegas repórteres calejados e com os novatos é sobre o tratamento que estamos dando a esses crimes. Os noticiários e os conteúdos das redes sociais estão etiquetando a morte da jovem como mais um caso de violência. Não é. É muito mais que isso. Ele mexe com um dos pilares da nossa cultura, que é andar pelas estradas. Não sou historiador. Tenho 67 anos, e 30 e poucos de repórter. Vou relatar aos meus colegas o meu testemunho de como andar pelas estradas se impregnou no nosso cotidiano. Nos anos 60, aconteceu o Movimento Hippie, nos Estados Unidos – tem uma enorme abundância de informações na internet. Dar carona e ser caroneiro se popularizou ao redor do mundo como uma maneira da minha geração andar pela estrada em busca de novos horizontes. Foi a era dos mochileiros – jovens de cabelos longos, roupas coloridas, carregando uma mochila nas costas.
Com o passar dos anos, os ideais do Movimento Hippie foram absolvidos pela sociedade de consumo. Ser caroneiro e dar carona para andar pelas estradas saiu de moda. Os mochileiros desapareceram. Há uns cinco anos, em uma das minhas viagens como repórter nos confins do Brasil, eu encontrei um velho sentado em um posto de combustíveis, no interior da Bahia, fazendo artesanato. Alguns minutos de conversa e algumas garrafas de cerveja esvaziadas, ele contava a história de como havia chegado ali. Começou a andar pelo mundo de mochila, nos anos 60, e esqueceu o endereço da casa onde morava, assim o velho resumiu a sua história. Confesso que senti uma ponta de inveja dela. Mas o meu mundo é outro. E nele a carona voltou graças à popularização do uso da internet. Claro que os jovens têm outros ideais. Mas o perigo que se expõem é muito semelhante ao da minha época. O caso de Kelly é uma lembrança dolorosa que os matadores continuam perambulando na busca de suas vítimas pelas estradas, agora virtuais.
Não tem como evitar o encontro de um jovem na estrada com um matador. Mas cabe a nós, repórteres, alertar que o uso dos aplicativos para selecionar caroneiros ou caronas não é sinônimo de segurança. Nos anos 60, o caroneiro e o carona se encontravam na beira da estrada, e o que iria acontecer dali para frente entre eles era incerto. As novas tecnologias não mudaram isso. Apenas o local do encontro. Agora, é no mundo virtual. Tão incerto como a beira de uma estrada. Pelo contexto que envolve a carona, a morte da Kelly não pode ser tratada como mais um caso de violência. Ele mexe com os piores pesadelos dos pais e com as lembranças de velhos repórteres.