Para facilitar a vida do nosso leitor, vamos olhar a tragédia da superlotação e da falta de oxigênio nos hospitais de Manaus (AM) como se estivéssemos fazendo um inquérito policial. Ele vai apontar o culpado pelas mortes causadas pela Covid-19 e o consequente sofrimento dos parentes das vítimas. Até as pedras das ruas do Brasil sabem que a responsabilidade pelo que está acontecendo nos hospitais de Manaus, capital da Amazonas, tem a digital do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido), que transformou em política de governo o negacionismo ao vírus que já matou mais de 200 mil brasileiros. O pilar central dos negacionistas é desdenhar a letalidade da Covid-19, ser contra as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) que sugerem como estratégia para lidar com doença o uso de máscara e o isolamento social e, por último, espalhar fake news sobre a eficiência das vacinas contra o vírus. Bolsonaro usou o seu cargo, sua popularidade e o apoio da vasta rede social que possui para boicotar o isolamento social e pregar o uso de drogas como a cloroquina (não tem efeito) contra a doença. Isso que escrevi não é novidade. De uma maneira direta, ou nas entrelinhas, está em todos os noticiários do Brasil e de vários países ao redor do mundo. O que senti falta na cobertura que estamos fazendo é o envolvimento dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), dos senadores e dos deputados federais. É sobre isso que quero conversar com os meus colegas.
Não estou falando das declarações formais que fazem parte da rotina jornalística dos chefes dos poderes. Não, eu falo de um dos esteios do bom jornalismo. A “conversa ao pé do ouvido”, quando fonte e repórter falam e discutem profundamente a pauta. Não é possível que no Brasil, lugar no mundo conhecido pelo excesso de leis, não exista uma legislação que coloque um freio nas pregações públicas absurdas do presidente e do seu ministro da Saúde, o general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, sobre a Covid-19. Aqui é o seguinte. Logo no início da pandemia, em 2020, os noticiários abriram espaços para médicos, cientistas e pesquisadores. O restante foi empurrado para o pé da página. Um lugar desconfortável. Muitos políticos descobriram que conseguiriam voltar às manchetes se negassem o vírus. Foram vários, vou citar os mais falados: o prefeito de Milão (Itália), Giuseppe Sala, o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Boris Johnson, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e Bolsonaro. Com o andar dos acontecimentos, o vírus começou a empilhar mortos pelos quatro cantos do mundo. Sala e Johnson mudaram a sua posição e passaram a ser defensores da OMS. Trump continuou insistindo no negacionismo e perdeu as eleições para o democrata Joe Biden.
E o que aconteceu com Bolsonaro? Ele seguiu na trilha do negacionismo e tornou-se muito popular ao redor do mundo pelas suas posições absurdas nos assuntos referentes à Covid. Aliás, eu lembro aos meus colegas que foram “posições absurdas” sobre assuntos sérios como a Ditadura Militar (1964 a 1985) que abriram as principais páginas dos jornais brasileiros para Bolsonaro quando ele era deputado federal pelo Rio de Janeiro. Só o seguinte. Naquela época, os absurdos que ele falava e viravam manchetes só serviam para “enrolar peixe”. Para quem não é jornalista, uma explicação: “enrolar peixe” é uma expressão dos tempos do jornalismo impresso, quando os jornais “velhos” (os encalhes das edições dos dias anteriores) eram vendidos para as feiras, que os usavam para embrulhar mercadorias, entre elas o peixe. Para o repórter era sinônimo de matéria sem consequência. Hoje a realidade é outra. Bolsonaro é presidente da República e tudo que ele diz é considerado importante. Portanto, quando ele faz manifestações políticas contra a Covid-19, as pessoas levam a sério. Ao contrário dos tempos que era deputado, hoje têm consequências as suas palavras. Manaus é um exemplo. As pessoas com Covid estão morrendo por falta de oxigênio. Morrem asfixiadas – há dezenas de matérias e vídeos na internet sobre o assunto.
Em nome do seu negacionismo, Bolsonaro tem boicotado o seu próprio governo nas ações referentes à Covid. Esses boicotes resultaram em uma enorme lambança no caso das vacinas. O Brasil já poderia estar vacinando a sua população como em outros 50 países, sendo um deles a Argentina. Não está por conta de decisões erradas tomadas pelo governo federal. Não estou propondo aos meus colegas, principalmente aos jovens repórteres que estão na correria do dia a dia das redações, que transformem cada matéria em uma tese de doutorado. Mas que se intensifiquem a conversa de “pé de ouvido” com as fontes de outros poderes para que se possa esclarecer melhor as coisas aos nossos leitores. Hoje o negacionismo do presidente da República está desorganizando o país com graves consequências na economia e principalmente no controle do vírus, que continua matando brasileiros. Ou seja, se nada for feito, o que está acontecendo em Manaus poderá se repetir em outras capitais do país. Como me disse um leitor: “Essa loucura tem que parar”. É por aí, colegas.