O legado para o jornalismo da morte da sem-terra Rose

A situação entre os fazendeiros e o MST sempre foi tensa e sempre que alguém semear o ódio aparecem as pessoas que julgam estar fazendo um bem para a comunidade tornando-se um justiceiro, como foi o caso que aconteceu no trevo de Sarandi em 1987. Foto: arquivo pessoal.

Sorridente e se despendido até a assinatura do próximo decreto, o presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL- RJ), assinou a flexibilização do porte de arma, cumprindo uma promessa de campanha, para alegria da Bancada da Bala, como é conhecida a frente parlamentar que defende o armamento da população civil. Caminhando no mesmo sentido, no início do mês o presidente, em discurso para produtores rurais, prometeu isentar o fazendeiro que atirar contra invasores de suas propriedades.  Ele não disse. Mas está nas entrelinhas do seu discurso que tratam-se dos seguidores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Tanto que o MST protestou. Ele não precisa decretar nada sobre o direito de defesa, porque já está garantido na Constituição. Na verdade, o presidente aproveitou a ocasião para inflar os ânimos, injetando uma dose cavalar de incentivo ao confronto entre os sem-terra e os fazendeiros.

O investimento que o presidente vem fazendo em acirrar os ânimos entre sem-terra e fazendeiros resgatou na minha memória um episódio que aconteceu em 1987.  Para ser mais exato, foi no dia 31 de março de 1987. Um grupo de sem-terra, que estava acampado na Fazenda Annoni, participava de uma protesto de rotina em um dos trevos de acesso a Sarandi, cidade agrícola no norte do Rio Grande do Sul. O bloqueio ficava no final de uma descida da  BR 386, que liga a Região Metropolitana de Porto Alegre ao oeste de Santa Catarina. Formou-se uma enorme fila de veículos, em especial de caminhões, nos dois sentidos da estrada, que é de pista simples, à espera do final do bloqueio. De uma hora para outra, um caminhão, transitando no sentido  de Santa Catarina, avançou na contramão e tentou furar o bloqueio, que era feito por pessoas e maquinário agrícola. Foram mortos na hora três  pessoas: Lari Grosseli, 23 anos, Vitalino Antonio Mori, 32, e Roseli Nunes da Silva, 33, a sem- terra Rose, mãe de três filhos, sendo que um deles, Marcos Tiaraju, foi a primeira criança que nasceu no acampamento da Annoni, uma gleba de 9 mil hectares, à beira da estrada Ronda Alta-Passo Fundo, que havia sido ocupada pelo MST, em 1985. Rose era uma das líderes do MST. Eu a conheci no dia da ocupação.

O esclarecimento desse caso lançou luzes sobre um personagem que, até então, estava nas sombras, no campo do enfrentamento entre os sem-terra e os fazendeiros da região. O caminhão pertencia a uma empresa de matérias de construção de Carazinho, cidade agroindustrial que fica a 40 quilômetros de Sarandi, no sentido de Porto Alegre. E era dirigido por um dos empregados da empresa. A primeira versão foi de que o veículo não conseguiu parar por motivos mecânicos. Essa foi a versão oficial. Mas havia outra que todos conheciam, e não havia como provar. A presença do MST na região abalou um grupo de fazendeiros que eram grandes proprietários de áreas que haviam ganho como herança. Eram áreas ociosas bem no meio de uma região de exploração agrícola intensiva. Esses proprietários não arrendavam essas terras, não vendiam e viviam de rendas de outros investimentos. A terra, para eles, era poder. Na ocasião, conversei com eles.

Esse grupo se encarregou de patrocinar na mídia regional uma campanha desqualificando os sem-terra, acusado-os de estupradores, assaltantes, de prostituição e de comunistas. A União Democrática Ruralista  (UDR), o braço político dos fazendeiros, ampliou esses ataques aos sem-terra. Foi esse ambiente de disputa política, inflado por esse grupo de fazendeiros, que contribuiu para que o motorista acreditasse que, ao tentar furar o bloqueio, estava fazendo um favor para a comunidade. Claro que isso nunca foi provado. Mas foi o que aconteceu. Tanto que a presença do MST na região forçou esses fazendeiros que mantinham suas terras ociosas a vendê-las ou arrendá-las pelo preço de mercado. Rose e outros dois agricultores pagaram com suas vidas pela manobra desse grupo de fazendeiros. O investimento que Bolsonaro está fazendo em acirrar os ânimos no conflito agrário pode encorajar uma pessoa comum a cometer um crime acreditando que está fazendo um bem para a comunidade. Como foi o caso da Rose e seus companheiros.

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