
O cinema brasileiro fez história no último domingo (02/03). O filme Ainda Estou Aqui, dirigido pelo cineasta Walter Salles, 68 anos, ganhou a inédita premiação do Oscar de melhor filme internacional, em Los Angeles, Estados Unidos. No seu discurso, Salles disse: “Vai para uma mulher que, depois de uma perda tão grande no regime autoritário, decidiu não se dobrar e resistir. Esse prêmio vai para ela: o nome dela é Eunice Paiva. E também vai para as mulheres extraordinárias que deram vida a ela. Fernanda Torres e Fernanda Montenegro”. O filme conta a história real do deputado federal Rubens Paiva, do PTB. Cassado pelos militares logo após o golpe de 1964, ele foi preso em janeiro de 1971 e desapareceu. Era casado com Eunice e tiveram cinco filhos. Um deles, Marcelo Rubens Paiva, 65 anos, jornalista e dramaturgo, é autor do livro Ainda Estou Aqui, transformado em filme por Salles.
Para ter acesso a toda a história do filme basta apertar uma tecla no celular. Vamos conversar sobre a oportunidade que o Oscar ganho pelo filme nos abre para explicarmos melhor para os nossos leitores o que é a extrema direita e o perigo que a sua volta representa para a democracia. Mas antes de iniciar a nossa conversa vou um contar um episódio, por considerá-lo oportuno para a ocasião. Aconteceu em uma noite de verão. Estava sentado em volta da mesa de um bar em Ipanema, no Rio de Janeiro, conversando com repórteres de vários cantos do país. Estávamos no Rio para participar da entrega do Prêmio Esso de Jornalismo, que durante 60 anos, entre 1955 e 2015, foi uma das maiores honrarias da imprensa brasileira. Nestas ocasiões, como é hábito entre jornalistas, enquanto cresce o número de garrafas vazias na mesa, aumenta o volume das conversas. Todas as reportagens que estavam concorrendo já tinham passado por vários estágios de seleção da premiação. Portanto, eram as melhores, e uma delas seria a vencedora do grande prêmio. Participei várias vezes desta disputa e lembro que, nestas horas, uma frase surrada, que ninguém sabe quem foi o autor, é repetida nas mesas dos botecos: “Não basta ter talento, também tem que ter sorte”. Lembrei-me da frase quando o filme de Salles começou a enfileirar prêmios em várias competições, incluindo o Globo de Ouro, que anualmente, desde 1944, é entregue pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood aos profissionais do cinema e televisão, dado a Fernanda Torres, como melhor atriz de filme de drama. E dos recordes de arrecadação em bilheterias no Brasil e em muitos cinemas ao redor do mundo. As premiações e os bons números de bilheteria não deixam dúvida da alta qualidade técnica do filme. E também da sorte da equipe que montou a campanha publicitária de Ainda Estou Aqui, que teve uma logística muito complicada, na execução do projeto – há muitas matérias disponíveis na internet. Vamos a nossa conversa.
O filme começou a circular justamente em um momento que a volta da extrema direita à disputa política começou a se consolidar e representar uma ameaça de novamente semear ditaduras ao redor do mundo, como aconteceu nos anos 60. Vou citar alguns fatos que considero estarem carecendo ser melhor esmiuçados para os leitores. Começando pela eleição, no ano passado, defendendo o slogan “Estados Unidos em primeiro lugar”, do presidente Donald Trump (republicano), 78 anos, e do seu vice, J. D. Vance, 40 anos. Eles tomaram posse no dia 20 de janeiro. E neste curto espaço de tempo espalharam confusão pelos quatro cantos do planeta. A última delas foi na sexta-feira (28\02), quando “armaram um barraco” dentro do Salão Oval da Casa Branca, símbolo máximo do poder americano. Trump, Vance e o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, 47 anos, só não foram para o tapa por detalhe. O motivo do “barraco” foi a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, iniciando uma guerra entre os dois países que já soma milhares de mortos, incluindo muito civis. Na conversa, Zelensky chamou o presidente da Rússia, Vladimir Putin, 72 anos, de carniceiro e outros adjetivos. Trump não só é amigo de Putin como seu admirador. O que aconteceu a seguir foi manchete em todos os jornais do mundo. Um aviso. Usei a expressão “armaram um barraco” por ser uma gíria muito comum nas redações para descrever uma confusão. E a considerei muito adequada para explicar o que aconteceu.
A extrema direita brasileira está empolgada com o governo Trump. A história é seguinte. Devido o somatório de uma série de coincidências, em 2018 foi eleito presidente da República Jair Bolsonaro (PL), 69 anos, tendo como vice o general da reserva Hamilton Mourão (Republicanos), 71 anos. Bolsonaro, capitão reformado do Exército, é um admirador dos envolvidos no golpe militar de 1964, principalmente dos que participaram da tortura dos inimigos do regime, como o coronel Carlos Alberto Ustra (1932-2015). Começou a organizar um golpe no minuto seguinte em que assumiu o seu mandato, em janeiro de 2019. Deu no que deu. Ele tentou um golpe e falhou. Como conta a investigação de 887 páginas da Polícia Federal (PF) que serviu de base para a denúncia de 272 páginas feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra o ex-presidente e mais 33 pessoas (27 militares da ativa, reserva e reformados). A extrema direita tinha sido sepultada pela globalização da economia, que ganhou musculatura com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e encerrou a Guerra Fria (1947–1991) travada entre Estados Unidos, representando o capitalismo, e a extinta União Soviética, o socialismo. O Brasil era um dos satélites dos americanos, como eram chamados os países aliados. A Guerra Fria semeou ditaduras militares ao redor do globo, que deixaram um rastro de mortes, desaparecidos, torturados e governantes impunes pelos crimes que praticaram. Ainda Estou Aqui conta o drama brasileiro deste período sombrio. Aliás, o filme é uma alerta que ajuda a despertar sobre o que significa a volta da extrema direita ao poder, como é o caso dos Estados Unidos. O Brasil tem eleições presidenciais no próximo ano. A extrema direita brasileira é um lobo em pele de cordeiro que já conseguiu sufocar a direita democrática e tem boas chances de sair bem nas eleições de 2026.