De maneira involuntária, o presidente Jair Bolsonaro (PL) forçou uma ruptura nos altos escalões das Forças Armadas que tem o potencial de modernizar e assegurar o futuro da organização. Como isso aconteceu? Antes de responder à pergunta vou dar umas explicações que julgo necessárias. O grosso do noticiário diário é feito por jovens repórteres mal remunerados e superatarefados que precisam entender de tudo e não têm tempo para ler os autores especializados em um assunto e muito menos para conseguir fontes confiáveis numa determinada área. Já fui um deles. E 42 anos depois de formado, hoje tenho tempo para ler tudo, além de acesso a boas fontes de informação. Nesse tempo, foquei a minha carreira de repórter em conflitos agrários, migrações e crime organizado nas fronteiras, três ramos difíceis do jornalismo investigativo. A minha experiência como repórter me permite ter essa conversa com jovens colegas e leitores que se interessam pelo que está por vir.
Vamos responder à pergunta, alinhando os fatos. A exemplo de outras organizações militares espalhadas pelos quatro cantos do mundo, as Forças Armadas brasileiras estão organizadas para defender o território nacional de uma invasão armada estrangeira. Na ausência dessa invasão, os militares começaram a se meter, por conta própria ou a pedido dos políticos, nos assuntos civis, alegando estarem defendendo a sociedade de uma ameaça comunista. Foi assim que nasceu o golpe militar de 1964, que durou até 1985, quando os civis reassumiram o poder político e se iniciou a redemocratização do país, que significou um avanço em áreas como economia, costumes, organização política e liberdades individuais garantidas por uma nova Constituição, que seria promulgada em 1988. Enquanto a sociedade civil brasileira caminhava para o futuro, as Forças Armadas ficavam paradas no tempo à espera dos exércitos estrangeiros que invadiriam o território nacional e dos comunistas que tomariam o governo. Ninguém explicou para os militares de alto escalão que ser comunista no Brasil não era mais crime. Mas um direito garantido pela Constituição. Nesse tempo todo formou-se nos altos escalões um elo muito forte entre os saudosistas do golpe de 1964. Em 2018, com a ascensão do candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PL), capitão reformado do Exército e defensor dos valores dos golpistas de 64, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, viu uma chance dos militares voltarem ao poder. Agora pelo voto popular. Bolsonaro era uma pessoa exótica, que por um somatório de fatores conseguiu se eleger com quase 60 milhões de votos. O general sabia que tinha apostado em um tipo exótico. Mas acreditava que conseguira dominá-lo.
Citei o general Villas Bôas porque ele deu um rosto para o movimento de saudosistas de 64. Ele e seus amigos aprenderam logo no primeiro mês do novo governo, em 2019, que ninguém dominava Bolsonaro. Muito pelo contrário. Todos que se metiam no seu caminho eram demitidos ou afastados. E o caminho dele era claro: preparava um golpe militar para ficar no poder. Ele tentou arrastar as Forças Armadas para a aventura – há matérias na internet. Mas não conseguiu porque encontrou pessoas como o general Edson Pujol, na época comandante do Exército, que se negou a apoiar um golpe – há matérias na internet. Bolsonaro tentou meia dúzia de vezes concretizar a tomada do poder pela força. A última foi no Dia da Independência. Aqui chegamos ao ponto alto da nossa conversa. O presidente da República pegou todos os oficiais de alto escalão das Forças Armadas, da ativa, reserva e reformados, que eram saudosistas de 64 e distribuiu cargos para eles nos primeiro, segundo e terceiro escalões do serviço público federal. A saída desse pessoal das fileiras do Exército, Marinha e Aeronáutica criou um espaço novo e vital para o arejamento dessas organizações. Esse arejamento pode garantir a reestruturação das Forças Armadas para enfrentar o inimigo que ronda as fronteiras do Brasil. O inimigo não são os exércitos dos nossos vizinhos. São grupos de criminosos internacionais organizados, armados e treinados por organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, que se instalaram na fronteira e estão colocando em prática o projeto de transformar o Brasil em um corredor de exportação de cocaína para os grandes mercados americanos e europeus. Isso já aconteceu no México, que se tornou um dos países mais violentos do mundo graças aos cartéis de varejistas de drogas – pegam por atacado na Colômbia, no Peru e na Bolívia e abastecem os varejistas americanos.
A Polícia Federal (PF), as polícias civis e as militares não têm condição técnica para lidar com esse problema. Ele é muito grande, complexo e exige muita organização. Esse tipo de colaboração já aconteceu durante a Copa do Mundo, em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016. Ou seja. Já existe a tecnologia para montá-la. O que falta? Não são equipamentos. Muito menos gente treinada para esse tipo de luta, em especial na área de informação. E necessário mexer no currículo de formação das escolas de oficiais e graduados das Forças Armadas. Há muito tempo a guerra convencional acabou. Outro tipo de guerra surgiu. E nesse novo tipo de guerra há uma arma nova muito poderosa: o dinheiro ilegal ganho com as drogas, o tráfico de armas e pessoas e outros crimes. Hoje parte desse dinheiro sujo está financiando o avanço dos garimpeiros nas áreas indígenas da selva amazônica. Se essas organizações criminosas conseguirem transformar o Brasil em um corredor de exportação o país voltará à idade da pedra. Vou finalizar a conversa repetindo um alerta que tenho feito. Para não se perder o foco do que estou falando. Não estou discutindo se Bolsonaro vai ser reeleito ou não. Muito menos quem o substituirá. Estou falando que um dia o mandato dele chegará ao fim e quem o substituir terá a oportunidade de evitar que o Brasil siga o mesmo caminho do México.