Há uma pergunta que os brasileiros estão fazendo. Como é que Joesley Batista, 43 anos, um dos donos da JBS, homem esperto nos negócios e nas alianças políticas, entregou provas contra ele para a Procuradoria-Geral da República (PGR)? Informações que podem detonar o acordo que fez na sua delação premiada, na Operação Lava Jato. Acordo esse que o livra da culpa de todos os crimes que havia cometido. Os termos do acordo são o sonho de qualquer bandido. Vamos usar a principal ferramenta de trabalho do repórter, a desconfiança, para cavar informações sobre esse episódio que ajudem o nosso leitor a entender o que aconteceu. Alerto aos repórteres novatos que refletir sobre esse acontecimento é um bom exercício para aperfeiçoar a arte da investigação jornalística.
Vamos aos fatos conhecidos. No meio das provas complementares que entregou à PGR para serem anexadas às já existentes na sua delação premiada, Joesley Batista enviou um áudio de quatro horas de uma conversa com o então seu executivo Ricardo Saud, 55 anos. Na conversa, os dois detalham a estratégia que será usada para conseguir benefícios no acordo de delação – insinuam alianças com autoridades do Poder Judiciário. E tratam de assuntos pessoais – toda a gravação está disponível na internet. O áudio estava apagado no equipamento entregue na PGR. Ele foi descoberto por um perito da Polícia Federal (PF). No jargão dos jornalistas, o empresário e o seu executivo fizeram um making of – termo em inglês usado para se definir como foi feito. No jargão dos repórteres de estrada, eles “jogaram merda no ventilador”.
Agora, vamos em busca dos fatos desconhecidos. Para chegar lá, precisamos caminhar em um terreno lamacento e, para evitar ficarmos atolados, vamos usar a desconfiança como guia nessa jornada. Joesley Batista não é filho de pai bobo – uma expressão que se usa no interior gaúcho para dizer que o cara é esperto. Ele é filho de Dona Flora e José Batista Sobrinho, o Zé Mineiro, que era dono da Casa de Carnes Mineira, um pequeno açougue em Anapólis (GO), nos anos 50. Em meio século, esse pequeno comércio se transformou no maior complexo industrial de proteínas do mundo. O principal construtor desse império foi Joesley Batista – a história toda pode ser encontrada na internet. Quem dá tiro no pé não chega aonde ele chegou. Vejamos a questão da gravação. Pela qualidade do som, ela foi feita com o equipamento posicionado de uma maneira que captou perfeitamente a conversa dos dois, mesmo as frases faladas em tom baixo.
O que vem a seguir, vamos desconfiar. A informação é que ele não sabia que o equipamento estava ligado. E, ao descobrir, apagou as gravações. E, depois, usou o mesmo equipamento para gravar outros conteúdos para serem anexados como provas a sua delação à Lava Jato. É do conhecimento geral que todo áudio e imagem que for gravado – em qualquer equipamento –, e depois apagado, não desaparece. Ele fica depositado na memória do equipamento e pode ser recuperado. Já vi isso acontecer. Apaguei várias vezes, sem querer, textos no sistema da redação que foram recuperados por técnicos. Joesley Batista não sabia disso? É impossível. Se não soubesse, não chegaria aonde chegou. Por um motivo muito simples. No mundo dos grandes negócios, onde ele vive, a espionagem é uma rotina, e os grandes empresários são treinados a se proteger. Portanto, ele sabe que a única maneira segura de apagar áudios ou imagens é destruindo o equipamento, espalhando os seus pedaços em lugares diferentes.
O passo seguinte dentro desse raciocínio é se perguntar: qual é o interesse dele em mandar provas contra si para a PGR? Joesley Batista não prega prego sem estopa – dito popular que significa não fazer nada sem receber algo em troca. Vejamos quem são os beneficiados e os prejudicados pelos áudios, eu escutei uma boa parte das conversas gravadas. Começamos pelo empresário. O conteúdo da gravação é um risco real para detonar o acordo da delação premiada. O grande impacto foi causado pelas palavras chulas, pelos deboches e pelas insinuações feitas nas conversas entre o empresário e o seu executivo. Ser debochado, ser boca suja e fazer planos não é crime. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal (PF), não é uma investigação fácil pelo volume de informações existentes. Seja lá qual for a conclusão da PF, ela será contestada pelos advogados.
O aparecimento do áudio beneficiou o fiador do acordo, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot – muito criticado pelos benefícios concedidos ao empresário. Janot vai ser substituído no próximo dia 17 pelo sua colega Raquel Dodge. ele sai do cargo como o fiador do acordo que possibilitou à PGR encurralar o grupo político do presidente da República, Michel Temer (PMDB – SP), que foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) e só não perdeu o cargo porque manobrou os deputados da Câmara Federal, que impediram o prosseguimento do processo. Mas uma nova denúncia vem por aí. Janot também sai do cargo como o homem que abriu a investigação que pode detonar o acordo de delação premiada. E, na teoria, caso seja desfeito o acordo, as provas contra os 107 parlamentares denunciados pelo empresário como corruptos seguem tendo validade. Ou seja, Janot sai como herói e deixa o abacaxi no colo da sua sucessora.
O que podemos concluir é que, no raciocínio de Joesley Batista, o seu inimigo não é a PGR. É o grupo político de Temer, composto por gente de grande habilidade na arte da conspiração. O cartão de apresentação deles é a bem sucedida articulação que resultou no impeachment da presidente da República Dilma Rousseff (PT – RS), que foi substituída pelo seu vice, Temer. O confronto entre o empresário e o grupo de Temer nas sombras acontece nas sombras e vale tudo:: dedo nos olhos, rasteira e faca nas costas. Temer tem a máquina do governo federal na mão, ele pode esmiuçar o cotidiano de qualquer um. Portanto a possibilidade de ter tido acesso ao áudio é real. E se divulgasse o áudio no oportuno que é depois da saída do cargo de Janot, Temer mataria dois coelhos com uma paulada só: destruiria o legado do seu inimigo Janot e colocaria no banco dos réus o ex-amigo Joesley Batista.
Frente a possibilidade de Temer ter tido acesso ao áudio, Joesley Batista agiu antes. E fez chegar o áudio chegar a PGR. Imagine se chegasse pelas mãos do ministro Eliseu Padilha, grande articulador do grupo politico do Temer. Aqui quero lembrar um fato sobre o empresário, que considero um mestre na arte de se antecipar nas jogadas. Pelo ano de 2007, eu voltava de uma reportagem pelos sertões do Brasil e me hospedei, em um fim de tarde, em um hotel, em Comodoro, cidadezinha agrícola no norte do Mato Grosso, à beira da BR-364. Enquanto o fotografo e o motorista foram tomar banho, eu fui para um boteco, em um posto de combustíveis, ao lado do hotel. Estava sentando, enchendo a cara e revisando as minhas anotações, quando chegou um vaqueiro e me perguntou:
– O senhor é jornalista?
Respondi:
– Sim (no carro em que viajava, estava o logotipo do jornal Zero Hora).
O vaqueiro falou:
– Veio aqui ver a fazenda de gado que o filho do Lula tem em sociedade com a JBS?
Respondi que não. Ficamos conversando e bebendo cerveja por um bom tempo. A história ficou gravada na minha cabeça. E, nos anos seguintes, o boato do filho de Lula ser o verdadeiro dono da JBS só cresceu. Há uns meses, o próprio Joesley Batista lembrou do boato. Na verdade, o grande amigo do empresário era Temer. Os boatos sobre o filho de Lula são obra do acaso? Seja lá qual for a origem, o fato é que serviram para desviar a atenção de que o amigo era o atual presidente Temer. Esse é o empresário Joesley Batista, um homem à frente do seu tempo na arte de camuflar os seus interesses reais.