Onde nascem as notícias que viram manchete dos jornais? Vou falar de um desses lugares que considero muito especial por exigir do repórter uma técnica muito apurada para separar o fato da fantasia. Essa nasce ao redor do ocupante de um posto de chefia, seja nas repartições públicas ou em empresas privadas. É ali que começam a circular os primeiros rumores sobre escândalos escondidos a sete chaves que acabam vazando para os repórteres e vão parar nas manchetes, muitas vezes derrubando o ocupante do cargo e abrindo espaço para outro grupo ocupar o lugar. Esse cargo tanto pode ser de chefe de almoxarifado quanto de presidente. O roteiro é esse. Lembrei-me do assunto por ter ouvido de um colega de redação dos tempos das máquinas de escrever um comentário sobre “as más-línguas”. Era assim que os repórteres chamavam as pessoas que espalhavam comentários maldosos.
O auge das más-línguas foi na década de 90. O país dava os primeiros passos no seu período de redemocratização, depois de ser governado por duas décadas pelas Forças Armadas, que haviam dado um golpe de estado em 1964 e ficaram no poder até 1985. A Constituição de 1989 acabou com a censura à imprensa e os jornais tinham sede de boas matérias. E a pressão em cima dos repórteres para conseguirem matérias inéditas era grande. Por conta disso, na década de 90 muitos casos que começaram com comentários maldosos das más-línguas acabaram virando manchetes internacionais. Lembro-me que, em 1992, circulava nas redações um boato de que o então presidente da República Fernando Collor de Mello teria tirando proveito de uma crise no casamento do seu irmão Pedro com a esposa Theresa para assediar a cunhada. No início parecia coisa das más-línguas que lutavam por cargos no governo federal. Mas não era só isso. Em maio daquele ano, Pedro deu uma longa entrevista para a revista Veja contando todos os podres do irmão presidente, confirmando o caso dele com a sua mulher e incluindo muitos escândalos de corrupção – há um imenso volume de matérias, documentários, vídeos e pesquisas universitárias disponíveis na internet. Mais recentemente, em março de 2020, no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), circulou uma notícia de que o deputado federal gaúcho Osmar Terra estava tendo um caso com a então primeira-dama Michelle Bolsonaro. Na época, fiz o post Osmar Terra e a primeira-dama foram vítimas de um franco-atirador de calúnias. O que houve, na realidade? Em fevereiro daquele ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou pandemia mundial a Covid-19. Bolsonaro se posicionou contrário à OMS e investiu em negar o poder de contaminação e mortalidade do vírus. Osmar Terra era um dos grandes influenciadores do presidente nessa tese. A sua palavra tinha um peso enorme porque, além de ser deputado, ele é médico.
Temendo perder poder junto ao presidente, o seu círculo íntimo de líderes, onde se incluía os três filhos parlamentares – Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador pelo Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal por São Paulo –, detonou Terra com a história da traição, que fora cochichada no ouvido da imprensa por uma má-língua. No final da história, como mostrou o relatório de 1,3 mil páginas da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid), Terra, com as suas opiniões, exerceu influência junto ao então presidente e contribuiu para colocar as digitais do governo nas mais de 700 mil mortes causadas pelo vírus no país. Na década de 90, eu estava começando a embalar a minha carreira de repórter. Na época, não era uma tarefa fácil para um novato conseguir um lugar ao sol porque as redações estavam transbordando de gente e o incentivo para buscar novos assuntos era enorme. Em 1992, publiquei uma série de reportagens chamada Os Senhores do Jogo do Bicho. Durante seis meses, bati de porta em porta em busca de informações sobre como funcionava o sistema dos bicheiros. A maioria das histórias que recolhi eram casos de brigas de casal, tiroteios entre bicheiros, crimes passionais, corrupção policial, políticos eleitos com dinheiro do jogo e outras coisas. Não havia documentos oficiais para saber o que era verdade ou mentira. Precisei verificar cada uma das informações. Não foi fácil separar o fato da fantasia. Mas consegui. E montei o roteiro de como as coisas aconteciam. Disse, em uma palestra, que uma informação vazada por uma má-língua sempre tem uma pista no meio que nos leva à verdade.
Nos tempos atuais, as más-línguas perderam muito do seu poder na imprensa devido a soma de três fatores. O primeiro é que surgiram novas tecnologias que garantem um contato com uma razoável segurança entre o repórter e a sua fonte. Outra é que as demissões em massa esvaziaram as redações e isso significa que hoje são raros os jornalistas que têm tempo para ter um contato presencial com a má-língua para ouvir a sua história. Nesse tipo de informação, o olho no olho é importante. E, por último, surgiram as fábricas de fake news, que são bem mais eficientes para detonar uma pessoa do que as más-línguas. Sou um velho repórter que aprendeu em quatro décadas de profissão que não tem sentido ficar falando que antigamente o jornalismo era melhor do que é atualmente, e vice-versa. É nosso dever fazer cada matéria como se fosse a última que escrevemos. É assim que evoluímos no nosso trabalho. O resto é coisa das más-línguas.