Tem coisas nas redações dos jornais que são ditas e ficam sendo repetidas anos a fio, sem que ninguém pare para pensar do que se trata. Lembro-me que, nos últimos 30 anos, os comentaristas econômicos da imprensa apontavam a economia chilena como um exemplo para o resto da América do Sul, especialmente para o Brasil. Durante a ditadura militar do Augusto Pinochet (1973 a 1990), o modelo econômico do país foi trocado. Substituíram o “Estado do bem-estar social”, que pode ser definido como a presença forte do governo na saúde, educação e assistência social ao trabalhador, pelo neoliberalismo, que, em linhas gerais, é a privatização dos serviços prestados pelo Estado. Por conta das mudanças, nos anos 80 aconteceu o “Milagre do Chile”, a economia bombou. No domingo (25/10), os chilenos votaram em um plebiscito em que 78% dos eleitores decidiram convocar uma assembleia constituinte para fazer uma nova constituição que substituirá a atual, que é da época de Pinochet e que garante os fundamentos do neoliberalismo.
O berço em que nasceu o neoliberalismo no Chile foi durante os 17 anos do governo Pinochet uma das ditaduras mais sanguinárias dos países do Cone Sul, entre eles a do Brasil (1964 a 1985). Pinochet e seus comandados são responsáveis por 40.280 vítimas, sendo 3.225 mortos e desaparecidos, segundo levantamento feito pela Comissão Valech, do Instituto Nacional de Derechos Humanos. Frequentemente, as matérias estão aí para provar, os colegas esqueciam esse detalhe quando apontavam o exemplo da economia chilena. A esperança dos chilenos é reparar com a nova constituição as injustiças cometidas contra o bem-estar social por um modelo econômico enfiado goela abaixo sob a mira de um fuzil. Perante essa nova realidade: como ficam os colegas da imprensa brasileira que ficavam citando como exemplo a economia chilena? Não sei. Mas eles vão ter que explicar essa história para os leitores deles. Nós repórteres temos que nos debruçar sobre o que aconteceu com o neoliberalismo no Chile e fazermos uma autópsia dos acontecimentos para evitarmos repetir o erro. A primeira pergunta que vamos ter que responder ao nosso leitor é porque, quando terminou a ditadura Pinochet, os chilenos não fizeram uma nova constituição, como os brasileiros fizeram em 1988?
A imagem de sucesso da economia chilena foi por muitos anos o principal argumento usado no Brasil para convencer a população de que a privatização das empresas estatais é fundamental para o progresso do Brasil. Eu lembro que no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP), de 1995 a 2003, começaram a serem privatizadas várias empresas estatais do ramo de telecomunicações. Na ocasião, o maior argumento que se publicava era que os novos donos fariam investimentos e tornariam o telefone, até então um artigo de luxo, abundante e barato, a exemplo do que tinha acontecido do Chile. No governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), entre 2003 e 2010, por várias vezes o modelo da economia chilena foi citado como exemplo de sucesso na área do bem-estar social, principalmente quando o governo turbinou vários programas sociais de Fernando Henrique Cardoso e lançou o Bolsa Família.
Lembram? Paulo Guedes chegou surfando na onda do bom exemplo do Chile ao assumir Ministério da Economia no governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Ele veio com o receituário pronto. Desejava que um dos pilares da Nova Previdência Social fosse os fundos previdenciários privados. Ou seja: o trabalhador financia a própria aposentadoria, depositando o seu dinheiro em bancos privados. Claro, a ideia não passou. Se não deu certo no Chile, por que daria no Brasil? Aqui é o seguinte, meus colegas. Precisamos explicar melhor para os nossos leitores essa história de aposentadoria privada. Por quê? Muitos brasileiros estão investindo na previdência privada para reforçar a renda da sua aposentadoria do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Hoje, basicamente as únicas informações que os leitores têm sobre esse assunto são dadas pelos vendedores dos planos, que, é claro, contam uma história de um mundo maravilhoso, e pelos conteúdos jornalísticos, que usam uma linguagem que chamamos nas redações de “economês” – só os economistas entendem. Como em qualquer investimento, há riscos. É necessário começarmos a explicar ao nosso leitor em uma linguagem simples e direta como funcionam os planos de aposentadoria privados. A decisão de fazer ou não é do leitor. Mas bem informá-lo é nossa.
Há material abundante – livros, documentários e muitas reportagens – elaborado por autores sérios disponíveis na internet que explicam o que aconteceu no Chile. Há um documentário que considero fundamental para entender o que houve lá, chama-se A Doutrina do Choque, da jornalista canadense Naomi Klein. Nós jornalistas temos que deixar claro para os nossos leitores que hoje, devido à facilidade da circulação de ideias, não existe nenhum país no mundo em que os fundamentos da economia sejam exclusivos de uma única escola, tipo neoliberal ou comunista. Por exemplo, os Estados Unidos, país capitalista onde o neoliberalismo é uma das correntes econômicas, complicou muito a vida dos americanos com a desregulamentação do mercado financeiro. Inclusive há empresas estatais americanas. A Inglaterra é um dos berços do capitalismo. Mas lá funciona um dos mais bem organizados sistemas de saúde pública do mundo. A imagem que passamos da economia cubana é de fracasso. Mas não é bem assim. As indústrias de turismo e de charutos têm investidores internacionais. As grandes redes de hotéis e indústrias de cigarros são donas de boa parte do setor de turismo e fumo. Inclusive da fábrica do famoso charuto Cohiba, que foi criado para o comandante Fidel Castro, tem participação de capitais europeus. Eu estive em Cuba durante duas semanas fazendo matérias sobre os investimentos estrangeiros, inclusive brasileiros, na fabricação de ônibus. Não podemos esquecer a China, um país comunista com a economia capitalista.
Uma das lições que o fracasso do neoliberalismo no Chile nos deixa é que nós jornalistas precisamos ter cuidado para não “entrar na pilha” – comprar uma ideia no jargão das redações – dos economistas quando afirmam que a única saída para um problema é a apontada pela escola de economia que eles seguem. Há outras opções. Claro, não podemos fazer de uma reportagem uma tese de economia. Mas temos de apontar para o nosso leitor que existem outros caminhos. É por aí, colegas.