É incrível a história denunciada pelo jornal Estadão no fim de semana (09/04) sobre a existência de um “Orçamento Secreto” de R$ 3 bilhões destinado a garantir as emendas dos parlamentares que apoiam o governo no Congresso. E que R$ 271 milhões desse dinheiro foram gastos para comprar tratores, retroescavadeiras e outros equipamentos agrícolas. Foram 115 tratores, sendo que só 12 deles ao preço normal. O restante, ao preço de R$ 15 milhões cada um, valor muito acima do mercado. A supervalorização dos tratores cunhou o termo “Tratoraço” como sinônimo de “Orçamento Secreto”. Esse fato me fez lembrar que tenho escrito e dito que, para nós jornalistas entendermos como funciona entre as quatro paredes o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), é necessário estudarmos a ascensão dos nazistas na Alemanha nos anos 30 e a Guerra Fria que se instalou no mundo logo depois que se calaram os canhões da Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), conflito que deixou um rastro de 80 milhões de mortos. A Guerra Fria foi uma disputa ideológica pelos corações e mentes da humanidade travada entre o capitalismo, liderado pelos Estados Unidos, e o socialismo, comandado pela União Soviética, que se estendeu de 1947 até 1991.
O esteio da Guerra Fria era que o equilíbrio do poder bélico das duas superpotências garantia a estabilidade mundial. Uma das maneiras de manter esse equilíbrio era camuflar os gastos dos governos em armas como se fossem outras despesas dos seus orçamentos. Por exemplo, o dinheiro usado para reaparelhar uma unidade militar entrava no orçamento como se fosse uma verba destinada para a compra de sementes agrícolas ou outra coisa qualquer que não tivesse nenhuma ligação com a área militar. Claro, o Brasil se perfilava ao lado dos Estados Unidos, que incentivaram e apoiaram o golpe militar de 1964 que derrubou o presidente eleito João Goulart, o Jango, do antigo PTB, gaúcho de São Borja. Há filmes, documentários, livros e reportagens de jornais da época que relatam as peripécias que os governos das superpotências e seus aliados faziam para esconder os seus gastos militares. Bolsonaro era criança na época. Nasceu em 1955, entrou na academia militar em 1977 e tornou-se tenente do Exército, onde permaneceu até 1988, quando foi para a reserva com o posto de capitão depois de se envolver em atos de insubordinação – há matérias na internet. Nas três décadas seguintes, ele foi parlamentar (vereador na cidade do Rio e deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro). Durante toda a sua vida parlamentar ele defendeu as bandeiras políticas da Guerra Fria. Elegeu-se presidente da República, em 2018, empunhando e pregando contra os comunistas. No seu governo há um grupo conhecido como os Generais do Bolsonaro, que somam mais de 6 mil militares da ativa, reserva e reformados de várias patentes espalhados pela máquina administrativa federal.
Nem mesmo durante o governo militar, que começou em 1964 e terminou em 1985, havia tantos militares na administração federal. Por que há hoje? O presidente Bolsonaro vive nos tempos da Guerra Fria, que acabou quando o bloco de países que formavam a União Soviética se desfez em 1991. Tudo que é organizado pelo governo brasileiro tem o ranço da Guerra Fria. No começo de 2021, uma notícia ocupou as manchetes dos noticiários. O governo federal havia gasto R$ 15 milhões em compras de víveres, sendo que R$ 1,5 milhão em latas de leite condensado, vinhos finos, bombons, picanha e chicletes destinados às Forças Armadas. Na ocasião, irritado, Bolsonaro justificou o gasto militar dizendo que o leite condensado era para “enfiar no rabo” dos jornalistas. Na ocasião fiz o post “A milionária compra de chicletes e leite condensado é uma casca de banana?”. No texto, alertava os colegas repórteres que a história dos chicletes e outras guloseimas podia ser justificativa para o gasto de dinheiro em outras áreas, tal qual durante a Guerra Fria. A história dessas compras ainda não foi esclarecida. A matéria do Estadão sobre o “Orçamento Secreto” é recheada de fatos, documentos e nomes. Aqui é o seguinte. Na época da Guerra Fria uma história dessas passava batida pela imprensa porque o acesso a documentos era muito difícil. Na maioria dos países da América do Sul, incluindo o Brasil, os governos eram militares e a imprensa estava sob uma severa censura. Hoje, um repórter aperta um botão no seu terminal na redação e tem acesso a tudo. Vivemos uma era em que não existem segredos. Existem reportagens mal apuradas. Dentro dessa realidade, como o governo acreditou que uma operação da envergadura do “Orçamento Secreto” não viraria manchete nos noticiários? Alguém tem que avisar o presidente da República que a Guerra Fria acabou e que o Brasil é uma democracia, onde um dos esteios é a liberdade de imprensa.
No início da semana (11/05) Bolsonaro acrescentou um desaforo novo contra os jornalistas: “canalhas”. O fato é o seguinte: “Orçamento Secreto” é uma operação muito parecida com o Mensalão, o escândalo que aconteceu no governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP) em que foi descoberto a existência de um esquema para a compra de apoio de parlamentares no Congresso. Hoje, o governo Bolsonaro está no meio do fogo cruzado da CPI da Covid, que está esclarecendo a responsabilidade do seu governo nas 410 mil mortes de brasileiros na pandemia da Covid-19, e o caso do “Orçamento Secreto”, que tem potencial para crescer. Arrematando a nossa conversa. Fui didático no assunto por entender que é necessário dar um contexto da história para ajudar os jovens repórteres que estão na correria da cobertura diária nas redações. Pela sobrecarga de trabalho – fazem texto, áudio e imagens –, eles não têm tempo de se contextualizar. E hoje eles são os esteios da mídia tradicional. Ninguém sabe os rumos que as coisas tomarão na política, economia e outros setores do país nos próximos meses. Dentro de um ambiente desses é fundamental que o repórter esteja muito seguro do que escreve, porque a única arma que o leitor tem para sobreviver nesse ambiente é a informação precisa e escrita de maneira simples e correta nos noticiários.